No início de 2020, o mundo enfrentava uma crise sanitária gravíssima: a pandemia global de Covid-19. Países inteiros estavam em isolamento, hospitais sobrelotados, pessoas morriam e havia grande medo, incerteza e sofrimento. Foi nesse clima que muitos líderes religiosos sentiram a necessidade de uma resposta espiritual à altura da emergência humana: oração, consagração e confiança em Deus.
No âmbito católico, Fátima (Portugal) tem uma longa história de consagrações ao Imaculado Coração de Maria e ao Sagrado Coração de Jesus, como parte da sua identidade espiritual ligada às aparições de 1917. Essas consagrações são vistas como gestos de entrega, reparação e pedido de proteção espiritual.
História
A primeira oração pessoal de consagração foi escrita por Santa Margarida Maria Alacoque, que supostamente recebeu revelações do Sagrado Coração de Jesus Cristo entre 1673 e 1675, em Paray-le-Monial, França. Segundo ela, foi composta sob a inspiração de Jesus, que ela escreveu ao padre católico romano, John Croiset, recomendando que ele a incluísse no livro que iria publicar sobre as suas revelações “Ela vem Dele, e Ele não concordaria com sua omissão.”
A 21 de junho de 1675, dia da primeira e futura Festa do Sagrado Coração, Alacoque alegou que recebeu uma visão de Jesus e tornou-a conhecida ao seu confessor, São Claude La Colombière. Após esse evento, Claude consagrou-se ao Sagrado Coração, tornando-se a primeira pessoa a ser consagrada ao Sagrado Coração de Jesus depois de Margarida Maria.
Em abril de 1875, o padre jesuíta Henri Ramière apresentou uma petição ao Papa Pio IX, juntamente com os nomes de 534 bispos e 23 superiores-gerais de institutos religiosos. O Papa aprovou e fez com que a Sagrada Congregação dos Ritos redigisse e publicasse um Ato de Consagração ao Sagrado Coração de Jesus. Em seguida, convidou todos os fiéis a se consagrarem no 200º aniversário das aparições de Santa Margarida Maria Alacoque.
Em 25 de maio de 1899, o Papa Leão XIII consagrou a raça humana e escreveu um Ato de Consagração da Raça Humana ao Sagrado Coração em sua carta encíclica Annum sacrum. Esta consagração foi feita com a influência de Maria do Divino Coração, que supostamente recebeu o pedido de Jesus Cristo, e em resposta às demandas recebidas ao longo de 25 anos. Este ato foi proclamado em todas as igrejas do mundo a 11 de junho de 1899 e é chamado de “grande ato” de seu pontificado.
Em 19 de maio de 1908, uma oração particular de consagração familiar conhecida como Ato de Consagração da Família ao Sagrado Coração foi aprovada e concedida com indulgência pelo Papa Pio X.
A celebração de 25 de março de 2020
O dia 25 de março é a Solenidade da Anunciação do Senhor, em que a Igreja celebra o momento em que o Arcanjo Gabriel anunciou a Maria que ela seria Mãe de Jesus. É uma festa de grande significado mariano e cristológico.
Em 2020, este dia foi escolhido para a consagração, porque o momento exigia uma resposta de fé pública e de confiança em Maria e em Jesus diante do sofrimento.
A cerimónia decorreu na Basílica de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, no Santuário de Fátima, Portugal. Foi presidida pelo Cardeal António Marto, então bispo de Leiria-Fátima e vice-presidente da Conferência Episcopal Portuguesa. O ato foi precedido pela oração do Terço às 18h30, rezado em várias línguas — português, espanhol, inglês e polaco — para unir diferentes nações na mesma súplica.
Os países envolvidos
Além de Portugal e Espanha, que foram os principais países consagrados, mais 22 conferências episcopais aderiram ao ato. Entre esses países estavam: Albânia, Bolívia, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Eslováquia, Guatemala, Hungria, Índia, México, Moldávia, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Polónia, Quénia, República Dominicana, Roménia e Timor-Leste.
Para alguns desses países, era a primeira vez que participavam numa consagração desse tipo, ou que se uniam publicamente numa consagração ao Sagrado e Imaculado Coração no âmbito desta iniciativa de Fátima. Por exemplo, a Roménia foi citada como sendo consagrada pela primeira vez nessa data.
O texto e as intenções da oração de consagração
Na oração, o Cardeal António Marto suplicou ao Sagrado Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria que ajudassem a Igreja neste momento de sofrimento — pelas vítimas diretas e indiretas da pandemia. Pediu ainda que a consolação fosse concedida aos mais vulneráveis — crianças, idosos, doentes, profissionais de saúde, voluntários, que os governantes fossem inspirados, e que solidariedade, cidadania e ajuda mútua crescessem e que esta consagração fosse uma entrega da Igreja, unida, numa súplica pela proteção divina.
Origens e antecedentes dessa consagração
Vários elementos espirituais e históricos antecederam esse ato:
- A Mensagem de Fátima — as aparições de Nossa Senhora em 1917 enfatizaram o pedido de reparação, oração e consagração ao Coração Imaculado de Maria.
- Consagrações anteriores de Portugal ao Imaculado Coração de Maria:
- 13 de maio de 1931 — conforme recordado, a primeira consagração de Portugal ao Imaculado Coração de Maria aconteceu então.
- Outras consagrações episcopais e movimentos de devoção popular consolidaram essa prática.
- Pedido popular — esta consagração de 2020 surgiu também de uma iniciativa de leigos, com milhares de assinaturas, dirigida ao presidente da Conferência Episcopal Portuguesa.
- União com a Igreja Espanhola — foi a primeira vez que Portugal e Espanha se consagraram juntos ao Sagrado Coração e ao Imaculado Coração em Fátima.
Impacto atual e significado espiritual
O ato teve forte repercussão mediática e espiritual, pois ocorreu em meio a uma crise global — muitos fiéis, ainda que isolados fisicamente, puderam unir-se à celebração através dos meios de comunicação, tendo servido como momento de convergência de oração, solidariedade e esperança, um lembrete de que a Igreja se vê como comunidade universal, intercessora e de cura.
Foi também ocasião de recordar os Santos Pastorinhos de Fátima (Francisco, Jacinta e Lúcia) e as suas provações — especialmente Jacinta, que viveu momentos de doença e isolamento, considerada como um exemplo de entrega e sofrimento.
Curiosidades
- O ato foi transmitido por televisão, rádio, plataformas digitais, permitindo que muitos se associassem ao vivo, apesar das restrições.
- O Terço antes da consagração foi rezado também em várias línguas — português, espanhol, inglês e polaco — enfatizando a dimensão internacional do momento.
- A imagem de Nossa Senhora que estava normalmente na Capelinha das Aparições esteve nesse dia na Basílica de Nossa Senhora do Rosário para a ocasião.
Relação com outras consagrações
Essa consagração de 2020 remete também para outros momentos em que a Igreja fez consagrações universais ou nacionais em tempos de crise ou de necessidade:
- A famosa consagração do mundo inteiro feita pelo Papa São João Paulo II ao Imaculado Coração de Maria, em 25 de março de 1984, também diante da imagem de Fátima.
- As consagrações de Portugal especialmente, ao longo do século XX, demonstram uma continuidade de devoção, reparação e confiança em Maria e no Coração de Jesus.
Conclusão
A consagração de 25 de março de 2020 foi mais do que um ato litúrgico: foi um gesto de fé, esperança e união num tempo de medo e fragilidade. Portugal, Espanha e os outros países que se associaram mostraram que a oração pode transcender fronteiras físicas — que a Igreja, mesmo quando impedida de se reunir em multidão, permanece corpo uno, clamando por misericórdia divina.
Essa consagração reafirmou valores centrais da espiritualidade cristã em Fátima: confiança, reparação, intercessão e entrega ao Coração Imaculado de Maria e ao Sagrado Coração de Jesus — um chamado para que, mesmo em meio à prova, sejamos sal da terra e luz do mundo.