Na história da Igreja Católica, o conclave é o momento mais solene e decisivo da vida da Igreja: a escolha do sucessor de São Pedro. Contudo, nem sempre o eleito aceitou o encargo. Ao longo dos séculos, houve raros mas marcantes casos em que cardeais — por humildade, idade avançada, motivos de consciência ou simples temor da responsabilidade — recusaram o trono de Pedro. Entre eles, destacam-se dois episódios particularmente simbólicos: o de Santo Filipe Benício, no século XIII, e o de Dom Aloísio Lorscheider, em pleno século XX.
Porque as recusas são raras
Recusar a eleição papal é, do ponto de vista canónico e prático, possível — não existe impedimento formal: a eleição só se torna efetiva quando o eleito declara aceitar. Mas, historicamente, os casos em que isso aconteceu são excepcionais. Além disso, a memória histórica recebeu muitas narrativas laterais — cardeais “fugindo” por humildade, santos que evitaram a honra, ou candidatos “papabili” que foram apontados pela imprensa ou por cronistas mas nunca formalmente eleitos. Por isso é essencial distinguir:
- Eleição formal seguida de recusa (caso raro e claramente documentado);
- Candidatura ou forte consideração seguida de recusa antes da eleição (mais comum);
- Relato póstumo / tradição hagiográfica (frequente nos medievais).
Casos antigos documentados
Adria(t) / Adrian — recusa(s) no século IX (c. 855 / 858)
Fontes medievais e obras de síntese (historiografia e enciclopédias católicas) recordam que um homem chamado Adrian foi oferecido/eleito e recusou em ocasiões do século IX (855 e 858), antes de aceitar em 867 como Papa Adriano II.
1187 — Theobald (Teobaldo) de Ostia
Em 1187, durante a vacância que seguiu a morte do papa Gregório VIII, várias fontes relatam que Theobald (Teobaldo), cardeal-bispo de Ostia, foi proposto e recusou a honra, levando à eleição de Paolo Scolari (Clemente III).
1227 — Recusa de proposta de “comissão”
Na eleição de 1227, foi tentado o método do compromissum (eleger por comissão). A escolha da comissão teria sido recusada — ou a comissão recusou a honra — e só depois a comunidade procedeu a nova ronda de eleições. Este episódio aparece como um antecedente das tensões que levaram a regras mais fixas sobre eleição papal.
Dom Aloísio Lorscheider e o conclave de 1978
O último e mais recente caso de um cardeal recusar a sua eleição como Papa surpreendeu os observadores do Vaticano. No conclave de outubro de 1978, após a morte repentina de João Paulo I, o cardeal brasileiro Dom Aloísio Lorscheider, então arcebispo de Fortaleza e uma das figuras mais respeitadas do episcopado latino-americano, terá sido sondado como possível candidato ao papado.
Fontes vaticanas e testemunhos posteriores indicam que o nome de Lorscheider foi sugerido em algumas votações iniciais, especialmente por cardeais progressistas que viam nele um pastor de fé firme, mas pastoralmente aberto.
A 15 de outubro de 1978, na votação do segundo dia do conclave, segundo várias fontes, Dom Aloísio Lorscheider teria obtido os votos necessários para ser eleito, mas recusou a eleição por razões de saúde, uma vez que tinha sido submetido a uma cirurgia cardíaca complexa com a colocação de oito pontes de safena.
O conclave acabaria por escolher o cardeal polaco Karol Wojtyła, que assumiu o nome de João Paulo II e se tornaria uma das figuras mais marcantes da história moderna da Igreja.
Santo Filipe Benício e o conclave de 1271
No entanto, o primeiro caso conhecido de recusa do papado ocorreu durante o longo conclave de Viterbo, entre 1268 e 1271 — o mais demorado da história da Igreja. Após a morte do Papa Clemente IV, os cardeais dividiram-se profundamente, e o trono de Pedro ficou vago por quase três anos.
Num gesto inédito de desespero, alguns cardeais sugeriram a eleição de Santo Filipe Benício, superior-geral da Ordem dos Servitas, homem de profunda santidade e grande renome espiritual. Filipe, porém, ao tomar conhecimento de que o seu nome era seriamente considerado, fugiu de Viterbo, recusando qualquer possibilidade de aceitação.
A sua humildade e desapego das honras humanas fizeram dele um exemplo notável de obediência e prudência. No fim, seria eleito o Beato Gregório X, que, entre outras medidas, reformou o sistema de eleição papal, estabelecendo regras mais rigorosas para o conclave.
Santo Filipe Benício foi canonizado em 1671, e é hoje recordado não apenas pela sua vida de virtude, mas também como o primeiro cardeal eleito a recusar o papado — uma recusa movida por humildade e temor de Deus.
Outros casos e a raridade da recusa
Casos de recusa formal do papado são extremamente raros. Entre outros episódios menos confirmados historicamente, fala-se do cardeal Giovanni Colombo, arcebispo de Milão, que também teria declinado discretamente o cargo no primeiro conclave de 1978, antes da eleição de João Paulo I.
Estas recusas, contudo, revelam uma verdade espiritual profunda: o papado, mais do que um título, é um fardo de serviço. A grandeza de quem o aceita, como a de quem o recusa, está no discernimento da vontade de Deus e na consciência da imensa responsabilidade pastoral que o cargo implica.
Um gesto de humildade e fidelidade
Tanto Santo Filipe Benício como Dom Aloísio Lorscheider personificam a mesma atitude: humildade diante da missão e fidelidade à Igreja. Recusar o papado, nestes contextos, não foi um ato de desobediência, mas de profunda consciência espiritual.
Enquanto a maioria dos cardeais aceita a eleição como expressão da vontade divina, há aqueles que, reconhecendo os próprios limites, preferem deixar que outro assuma a cátedra de Pedro. São gestos que recordam ao mundo que o poder na Igreja não é domínio, mas serviço — o serviço de amor que Cristo pediu a Pedro: “Apascenta as minhas ovelhas.” (Jo 21,17)
Conclusão
A história dos cardeais que recusaram o papado é, afinal, uma história de fé e discernimento. Do retiro silencioso de Santo Filipe Benício em 1271 à modéstia do cardeal Lorscheider em 1978, cada um desses episódios recorda que o verdadeiro espírito da Igreja não está no poder terreno, mas na obediência humilde à vontade de Deus.
São exemplos que, ainda hoje, ecoam nas palavras de tantos pastores: “Servir, e não ser servido.”