No coração de Roma, entre os muros do Vaticano e o Castel Sant’Angelo, encontra-se um dos lugares mais fascinantes e misteriosos da história pontifícia: o Passetto di Borgo. Este corredor elevado e fortificado, quase invisível entre os edifícios do bairro de Borgo, foi durante séculos a rota de fuga secreta dos papas em tempos de perigo. A sua existência simboliza tanto o poder temporal da Igreja como a sua vulnerabilidade diante das convulsões políticas que marcaram a história de Roma.
Origens do Passetto di Borgo
A origem do Passetto remonta ao século XIII, mais precisamente ao pontificado do Papa Nicolau III (1277–1280). Preocupado com a segurança do Sumo Pontífice e da Cúria Romana, Nicolau III ordenou a construção de uma passagem elevada e muralhada que ligasse diretamente o Vaticano (então já sede papal) ao Castel Sant’Angelo, uma fortaleza que servira de mausoléu ao imperador Adriano e que, desde o século VI, funcionava também como bastião militar papal.
O Passetto — termo que deriva de passageiro ou pequeno corredor — tem cerca de 800 metros de comprimento e percorre o alto das muralhas leoninas que cercam o Vaticano. A estrutura, feita de pedra, eleva-se o suficiente para permitir o deslocamento seguro de pessoas sem serem vistas a partir do solo, e o seu interior foi concebido para garantir uma passagem rápida e protegida, mesmo em caso de cerco.
Onde se situa e qual o trajeto
O Passetto inicia-se junto ao Palácio Apostólico, na Cidade do Vaticano, e estende-se ao longo da antiga muralha que acompanha o bairro de Borgo, terminando no Castel Sant’Angelo.
O trajeto segue uma linha ligeiramente curva, acompanhando as antigas defesas leoninas, e é composto por um corredor estreito, em parte coberto, com pequenas janelas de observação. O interior é simples, mas eficiente: degraus, rampas e portas de segurança permitem percorrer toda a distância entre o palácio papal e a fortaleza sem exposição direta.
Durante séculos, este corredor manteve-se fechado ao público, sendo utilizado apenas por guardas, mensageiros e, em situações extremas, pelos próprios papas.
O uso histórico mais célebre — o Papa Clemente VII e o Saque de Roma (1527)
O único papa conhecido por ter utilizado o Passetto para escapar à morte foi Clemente VII (Giulio de’ Medici), durante o terrível episódio do Saque de Roma de 1527.
Naquela altura, a cidade de Roma foi brutalmente atacada pelas tropas imperiais de Carlos V, compostas em grande parte por mercenários alemães e espanhóis que, fora de controlo, invadiram a cidade em busca de pilhagem. A 6 de maio de 1527, as forças imperiais romperam as defesas romanas, provocando um dos episódios mais devastadores da história da Cristandade.
Clemente VII, percebendo que o Vaticano e a Basílica de São Pedro estavam prestes a ser tomados, fugiu através do Passetto di Borgo, acompanhado por membros da sua guarda e do séquito pontifício. Protegido pelas muralhas, o Papa conseguiu chegar ao Castel Sant’Angelo, onde se refugiou durante quase um mês.
O episódio entrou para a história não só pela violência do saque — que devastou Roma, matou milhares e feriu profundamente o prestígio da Santa Sé — mas também por ter demonstrado a importância estratégica do Passetto. Sem ele, o Papa provavelmente teria sido capturado ou morto.
Durante o cerco, o próprio Michelangelo, que então trabalhava para o papado, reforçou algumas estruturas defensivas da cidade e do castelo, prevendo a possibilidade de fuga. O Passetto revelou-se, portanto, não apenas um corredor de pedra, mas um símbolo da providência e da resistência da Igreja em tempos de crise.
O Passetto ao longo dos séculos
Depois do Saque de Roma, o Passetto continuou a existir como rota de emergência papal, embora raramente tenha sido usado. Ao longo dos séculos XVI a XIX, foi mantido, reforçado e restaurado em várias ocasiões, em particular durante os pontificados de Alexandre VI Bórgia e Pio IV, que melhoraram as fortificações do Vaticano e do Castel Sant’Angelo.
Alexandre VI Bórgia precisou utilizar a passagem secreta, que ampliou e concluiu nos moldes que possui até hoje em 1492, para fugir dos franceses, que invadiram Roma apenas dois anos depois.
Durante períodos de tensão política — como as invasões napoleónicas (1798–1814) e a unificação italiana (século XIX) — o Passetto voltou a ser vigiado e preparado para eventuais fugas, embora, felizmente, nunca tenha sido novamente necessário usá-lo.
O Passetto na atualidade
Hoje, o Passetto di Borgo encontra-se parcialmente conservado e restaurado, integrando o património do Estado da Cidade do Vaticano e da República Italiana, uma vez que o trajeto atravessa o bairro romano de Borgo.
Embora habitualmente fechado ao público, o corredor é aberto em visitas guiadas especiais promovidas pelo Museu do Castel Sant’Angelo e pela Superintendência do Património de Roma. Nessas ocasiões, é possível percorrer parte do trajeto, visualizar a estrutura interna e imaginar o que terão sentido Clemente VII e os guardas suíços ao atravessá-lo sob o som distante das tropas invasoras.
A vista sobre o bairro de Borgo e a cúpula de São Pedro torna a experiência profundamente evocativa, sobretudo para peregrinos e visitantes interessados na história da Igreja.
Significado simbólico e espiritual
O Passetto di Borgo é mais do que uma obra de engenharia militar: é um símbolo da proteção divina e da continuidade da Igreja. Ao longo dos séculos, a Igreja Católica enfrentou perseguições, guerras e crises, mas sobreviveu — e o Passetto representa fisicamente essa capacidade de refúgio e renascimento.
A fuga de Clemente VII, embora fruto de um desastre, acabou por inspirar reformas e reflexões sobre a relação entre o poder espiritual e o poder temporal. O episódio marcou o fim do ideal do Papa como príncipe renascentista e abriu caminho a uma visão mais espiritual do papado nos séculos seguintes.
Hoje, o Passetto recorda que, mesmo diante da adversidade, a Igreja sempre encontrou caminhos — visíveis e invisíveis — para sobreviver e continuar a sua missão.
Curiosidades
- O Passetto aparece em várias obras de literatura e cinema, incluindo o romance “Anjos e Demónios” de Dan Brown, onde é descrito como um túnel misterioso usado pelo Vaticano.
- Durante escavações e restauros no século XX, foram encontrados vestígios medievais e inscrições que confirmam as sucessivas ampliações ao longo dos séculos.
- A palavra Passetto também designa passagens similares em outras cidades italianas, mas nenhuma com a importância histórica e simbólica do corredor vaticano.
Conclusão
O Passetto di Borgo é uma testemunha silenciosa de séculos de história da Igreja — um corredor de pedra que une o poder espiritual do Vaticano à fortaleza terrena do Castel Sant’Angelo. Da sua criação sob Nicolau III, à fuga dramática de Clemente VII durante o Saque de Roma, até à sua preservação moderna, o Passetto permanece como um símbolo de proteção, prudência e fé.
Num mundo onde o visível e o espiritual muitas vezes se cruzam, o Passetto recorda-nos que a Igreja, mesmo nos momentos mais sombrios, nunca deixou de encontrar o seu caminho seguro — guiada pela mão da Providência.