A eleição do Papa João XXII, ocorrida em 7 de agosto de 1316, marcou o início de uma das fases mais complexas e controversas da história da Igreja Católica: o chamado Papado de Avignon. Esta escolha papal não apenas encerrou um dos mais longos períodos de sede vacante da Idade Média, mas também inaugurou uma nova era em que o papado se estabeleceu, por quase 70 anos, fora de Roma.
Contexto histórico: a morte de Clemente V e a crise do papado
O Papa Clemente V faleceu em 20 de abril de 1314, deixando a Igreja num momento delicado. O seu pontificado fora marcado pela transferência da Cúria Romana para Avignon, no sul de França, e pela dissolução da Ordem dos Templários, decisão imposta sob forte influência do rei Filipe IV, o Belo, de França.
A morte de Clemente V mergulhou a Igreja num vazio de poder. As divisões internas do Colégio de Cardeais — entre facções pró-francesas e pró-italianas — tornaram impossível a escolha imediata de um sucessor. Durante mais de dois anos, não houve Papa, num impasse que enfraquecia a autoridade espiritual e política da Santa Sé.
Este interregno, conhecido como sede vacante de 1314–1316, foi um dos mais longos da história papal e deixou a cristandade num estado de grande incerteza.
A difícil eleição em Lyon
Para tentar desbloquear a situação, o rei Filipe V de França, sucessor de Filipe IV, convocou os cardeais para se reunirem na cidade de Lyon, em território francês, oferecendo garantias de segurança e conforto. Ainda assim, o conclave, iniciado em abril de 1316, foi marcado por tensões, intrigas e pressões políticas.
Após longos debates, os cardeais concordaram em escolher um compromissário — uma figura externa ao Colégio, neutra e de confiança — para evitar o domínio de qualquer das facções.
A escolha recaiu sobre Jacques Duèze (ou Jacobus Duèze), um homem de 72 anos, natural de Cahors, doutor em Direito Canónico e então bispo de Avignon. A sua eleição ocorreu oficialmente a 7 de agosto de 1316, e foi coroado Papa a 5 de setembro do mesmo ano, adotando o nome de João XXII (Ioannes Vicesimus Secundus).
O perfil de Jacques Duèze antes do papado
Jacques Duèze nascera por volta de 1244, numa família modesta do sul de França. Estudou teologia e direito em Paris e Montpellier, destacando-se como jurista e administrador eclesiástico. Foi sucessivamente bispo de Fréjus (1300), arcebispo de Avignon (1310) e cardeal-bispo de Porto e Santa Rufina (1312).
Homem culto, determinado e de temperamento firme, Duèze era respeitado pela sua prudência e pela sua experiência em questões canónicas, o que o tornou uma escolha de consenso.
O início do papado e a consolidação de Avignon
Com João XXII iniciou-se de forma oficial o chamado Papado de Avignon (1309–1377), embora a Cúria já residisse ali desde Clemente V. Ao decidir permanecer em Avignon em vez de regressar a Roma, João XXII consolidou a cidade francesa como o novo centro da cristandade.
Instalou-se no Palácio Episcopal de Avignon, que viria a ser ampliado pelos seus sucessores até se tornar o monumental Palácio dos Papas. A cidade transformou-se num vibrante centro administrativo e espiritual, mas também símbolo da influência francesa sobre o papado — algo que geraria críticas crescentes por parte de príncipes e teólogos italianos.
O governo de João XXII
O pontificado de João XXII (1316–1334) foi um dos mais longos e marcantes do século XIV. O Papa empreendeu uma profunda reorganização financeira da Cúria Romana, tornando-a mais eficiente, mas também mais centralizadora. Criou novos impostos sobre o clero e fortaleceu a autoridade papal sobre os bens eclesiásticos, o que o tornou uma figura controversa.
No campo teológico, João XXII envolveu-se em várias disputas doutrinais, nomeadamente com os franciscanos espirituais, que defendiam a pobreza absoluta de Cristo e dos apóstolos. O Papa condenou oficialmente esta posição, afirmando que Cristo e os apóstolos possuíram bens, o que gerou tensão com a Ordem Franciscana e até acusações de heresia contra o próprio Pontífice.
Além disso, João XXII enfrentou conflitos políticos com o Sacro Império Romano-Germânico, especialmente com Luís IV da Baviera, que o desafiou e chegou a apoiar um antipapa, Nicolau V.
Controvérsia teológica e acusações de heresia
Nos últimos anos de vida, João XXII gerou polémica ao ensinar, em sermões privados, que as almas dos justos não gozavam da visão beatífica imediata após a morte, mas apenas após o Juízo Final.
Esta posição foi considerada herética por muitos teólogos e cardeais, levando o Papa, pouco antes de morrer, a retratar-se publicamente. O seu sucessor, Bento XII, clarificaria a doutrina com a constituição Benedictus Deus (1336), afirmando oficialmente que as almas dos justos veem Deus imediatamente após a morte.
Morte e legado
O Papa João XXII faleceu em 4 de dezembro de 1334, em Avignon, aos cerca de 90 anos de idade, após 18 anos de pontificado. Foi sepultado na Catedral de Notre-Dame-des-Doms, onde o seu túmulo ainda hoje pode ser visitado.
O seu legado é ambíguo: por um lado, foi um administrador hábil, que fortaleceu a estrutura da Igreja e manteve a unidade num tempo de crises políticas e heresias; por outro, a sua permanência em Avignon e o caráter centralizador da sua governação acentuaram a perceção de um papado dependente da França.
Curiosidades e impacto histórico
- João XXII foi o primeiro Papa a reinar inteiramente fora de Roma, estabelecendo o modelo do papado avinhonês.
- Foi também o primeiro a desenvolver uma estrutura financeira papal moderna, com receitas regulares provenientes de benefícios eclesiásticos.
- Durante o seu pontificado, canonizou Santo Tomás de Aquino (1323), um dos maiores teólogos da Igreja.
- O seu longo governo serviu de transição entre a Idade Média teocrática e um papado cada vez mais burocrático e político.
Conclusão
A eleição de João XXII, a 7 de agosto de 1316, não foi apenas o desfecho de uma longa crise eleitoral, mas o início de uma nova era na história da Igreja. Com ele, o papado entrou definitivamente em Avignon, longe das ruínas e das lutas de Roma, mas também mais próximo das pressões das coroas europeias.
A figura de João XXII permanece, assim, como um símbolo de transição e controvérsia: um Papa que consolidou o poder e a organização da Igreja, mas ao preço de um distanciamento da sua sede tradicional e da sua aura universal.
“João XXII foi o homem que deu estabilidade a um papado errante — mas ao fazê-lo, prendeu Roma ao Ródano.”