Na história bimilenária da Igreja Católica, poucos acontecimentos causaram tanto espanto e reflexão como a renúncia de um Papa. Este gesto raríssimo — de abdicação voluntária do ministério petrino — só ocorreu em circunstâncias excecionais. O primeiro a fazê-lo foi Celestino V, em 1294, um homem santo e humilde, cuja breve passagem pelo papado marcou profundamente a história da Igreja. Séculos depois, em 2013, o Papa Bento XVI seguiria um caminho semelhante, evocando inevitavelmente o exemplo do seu longínquo predecessor.
Um eremita chamado Pedro de Morrone
Antes de se tornar Papa, Celestino V era Pedro de Morrone, um monge eremita nascido por volta de 1215, nas montanhas dos Apeninos, em Itália. Conhecido pela sua vida austera, oração constante e profunda humildade, Pedro fundou a Ordem dos Celestinos, uma ramificação da Regra de São Bento, e viveu durante décadas em solidão, dedicando-se à penitência e à contemplação.
A sua fama de santidade espalhou-se por toda a Itália. Quando o papado ficou vago após a morte de Nicolau IV em 1292, os cardeais reunidos em Perugia entraram num impasse de mais de dois anos, incapazes de chegar a consenso. O trono de Pedro permanecia vazio, e a Igreja, sem liderança, vivia uma crise grave.
Desesperados, os cardeais decidiram eleger um homem fora do Colégio — um santo eremita que representasse pureza e desapego do poder mundano. Assim, em 5 de julho de 1294, Pedro de Morrone foi eleito Papa, aos 79 anos de idade.
A eleição e o papado de Celestino V
O humilde eremita aceitou a eleição com relutância, tomando o nome de Celestino V. A sua coroação teve lugar em 29 de agosto de 1294, em L’Aquila, e desde o início ficou claro que não estava preparado para as complexas exigências do governo da Igreja.
Celestino V vivia segundo o espírito monástico e contemplativo, e a súbita transição para a vida pública, cercada de intrigas políticas e pressões externas, causou-lhe profunda angústia. Desejava apenas rezar e conduzir a Igreja à santidade, mas rapidamente se viu manobrado por cortesãos e por figuras políticas — sobretudo o cardeal Benedetto Caetani, jurista experiente e homem de forte personalidade.
O novo Papa transferiu a Cúria para Nápoles e tentou reformar a vida espiritual, mas a falta de experiência administrativa e o seu desejo de solidão tornaram-se um obstáculo.
Em apenas cinco meses de pontificado, Celestino começou a ponderar a renúncia, convencido de que outro poderia servir melhor a Igreja.
A renúncia histórica
Em 13 de dezembro de 1294, Celestino V renunciou formalmente ao papado, declarando:
“Livremente e por espontânea vontade, renuncio ao trono pontifício, ao encargo e à dignidade, por humildade, por fraqueza física e pelo desejo de uma vida mais tranquila.”
Foi a primeira renúncia voluntária de um Papa na história. O gesto foi recebido com espanto e, para alguns, escândalo; mas também com admiração pela sua humildade e lucidez espiritual.
O Colégio Cardinalício aceitou a renúncia, e, poucos dias depois, o cardeal Benedetto Caetani foi eleito Papa Bonifácio VIII.
O destino de Celestino V
Após a renúncia, Celestino tentou regressar à vida de eremita. Contudo, Bonifácio VIII, temendo que o antigo Papa pudesse ser usado por facções políticas como antipapa, ordenou que fosse vigiado e confinado no castelo de Fumone, onde permaneceu sob guarda até à sua morte, em 19 de maio de 1296.
Quando o seu corpo foi encontrado, dizem as crónicas, o seu rosto conservava uma expressão serena. Mais tarde, foi reconhecido como santo pela Igreja, e as suas relíquias repousam hoje na basílica de Santa Maria de Collemaggio, em L’Aquila.
A figura de Celestino V tornou-se símbolo da humildade e renúncia às glórias terrenas. Dante Alighieri, na “Divina Comédia”, aludiu a ele (sem o nomear diretamente) como aquele que fez “o grande recuo por cobardia”, embora muitos estudiosos modernos considerem que o poeta se referia ao ato com mais dor que crítica, reconhecendo o peso insuportável do papado para um homem de alma contemplativa.
O eco em Bento XVI
Mais de sete séculos depois, o nome de Celestino V voltou a ser lembrado em todo o mundo. Em 11 de fevereiro de 2013, o Papa Bento XVI anunciou a sua renúncia ao ministério petrino, tornando-se o primeiro Papa em quase 600 anos a fazê-lo (o último fora Gregório XII, em 1415, num contexto de cisma).
Tal como Celestino, Bento XVI justificou a decisão pela falta de forças físicas e espirituais para governar a Igreja:
“Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são adequadas para exercer adequadamente o ministério de Pedro.”
Curiosamente, em 2009, durante uma visita a L’Aquila, Bento XVI depositou o seu pálio sobre o túmulo de Celestino V, num gesto de reverência que, retrospetivamente, muitos viram como um prenúncio da sua própria decisão.
O significado e impacto da renúncia papal
A renúncia de Celestino V abriu um precedente jurídico e teológico importante: demonstrou que o Papa, embora supremo pastor, pode abdicar livremente do cargo, desde que o faça de forma consciente e voluntária. Esse princípio foi posteriormente confirmado no Direito Canónico, e serviu de base para a renúncia de Bento XVI.
No caso de Celestino V, a sua saída foi vista como sinal de fragilidade humana diante de uma missão divina. No caso de Bento XVI, foi interpretada como um gesto de coragem e realismo espiritual, mostrando que a força do papado não depende da permanência pessoal, mas da fidelidade ao serviço da Igreja.
Conclusão
A história de Celestino V é a de um homem santo que, movido pela humildade, preferiu abdicar do poder a trair a sua consciência. A de Bento XVI, séculos depois, é a de um teólogo lúcido que, com serenidade e fé, reconheceu os próprios limites diante da grandeza da missão.
Ambos, cada um à sua maneira, recordam ao mundo que o papado não é domínio, mas serviço, e que o verdadeiro poder da Igreja nasce sempre da obediência e da humildade diante de Deus.
Curiosidade final:
Na Basílica de Santa Maria de Collemaggio, em L’Aquila, onde repousam os restos de Celestino V, os peregrinos continuam a venerar o santo eremita. Em 2013, após a renúncia de Bento XVI, milhares de fiéis voltaram a visitar o local, vendo nele o símbolo de uma humildade que atravessa os séculos — a do Papa que renunciou por amor à Igreja.