Entre os episódios mais marcantes da vida de São Francisco de Assis, um destaca-se pela sua ousadia, coragem e atualidade: o encontro com o sultão Al-Malik Al-Kamil, no Egipto, durante a Quinta Cruzada. Este acontecimento, que se deu em setembro de 1219, continua a ser lembrado como um dos momentos mais singulares de diálogo e respeito mútuo entre cristãos e muçulmanos na Idade Média.
Contexto: a Quinta Cruzada
No início do século XIII, a cristandade ocidental estava envolvida nas Cruzadas, campanhas militares lançadas com o objetivo de recuperar Jerusalém e a Terra Santa. A Quinta Cruzada (1217-1221) concentrou-se no Egipto, considerado estratégico para enfraquecer o poder muçulmano.
Em 1219, as tropas cruzadas instalaram-se em Damieta, cidade portuária no delta do Nilo, e aí travaram violentos combates contra o exército muçulmano comandado por Al-Malik Al-Kamil, sobrinho do célebre Saladino.
Foi neste cenário de guerra que São Francisco de Assis decidiu atravessar as linhas de combate, não para lutar, mas para anunciar a paz e o Evangelho.
A ousadia de Francisco
Sem armas, vestido apenas com o seu hábito pobre, Francisco apresentou-se no campo muçulmano acompanhado de um irmão franciscano. Muitos cronistas relatam que os soldados muçulmanos, em vez de o matarem, levaram-no ao sultão, impressionados com a sua coragem.
Diante de Al-Malik Al-Kamil, Francisco falou abertamente da sua fé em Cristo. Os relatos medievais descrevem-no como alguém que pregava com grande convicção, propondo ao sultão a conversão ao cristianismo. Contudo, Francisco não o fez de forma agressiva ou impositiva, mas com respeito, testemunhando a verdade que trazia no coração.
O encontro e o diálogo
Ao contrário do que se poderia esperar num contexto de guerra, o sultão recebeu Francisco com admiração e cordialidade. As fontes dizem que Al-Malik reconheceu nele um “homem de Deus” e ficou impressionado com a sua simplicidade e coragem.
Embora o sultão não tenha aceitado converter-se, ofereceu hospitalidade a Francisco, permitindo-lhe permanecer vários dias no seu acampamento. Segundo alguns relatos, Francisco terá mesmo tentado realizar uma prova de fogo para demonstrar a verdade da sua fé, mas o sultão recusou para não expor a sua própria religião ao descrédito.
No final, Francisco regressou ao campo cristão em segurança, levando consigo a experiência de um diálogo pacífico no meio da violência da guerra.
Resultados imediatos
Do ponto de vista militar, o encontro não alterou o curso da guerra, que continuou até 1221, terminando com a retirada dos cruzados. Contudo, espiritualmente e simbolicamente, o gesto de Francisco marcou uma diferença.
Ele mostrou que era possível aproximar-se do “inimigo” com palavras e não com armas, oferecendo uma alternativa radical ao espírito das Cruzadas.
Impacto nos tempos seguintes
O encontro entre Francisco e Al-Malik tornou-se uma referência para os franciscanos, que receberam posteriormente a missão de custodiar os Lugares Santos, papel que ainda hoje exercem através da Custódia da Terra Santa.
O espírito de diálogo inaugurado por Francisco antecipou de certa forma uma visão de paz e reconciliação entre religiões, séculos antes de o tema ganhar espaço no magistério oficial da Igreja.
Atualidade do encontro
Hoje, este episódio é frequentemente evocado como um símbolo do diálogo inter-religioso. Em 2019, por ocasião do oitavo centenário do encontro, o Papa Francisco deslocou-se a Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, onde assinou com o Grande Imã de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, o Documento sobre a Fraternidade Humana, inspirando-se precisamente no exemplo do poverello de Assis.
A mensagem de Francisco permanece viva: no meio de conflitos e divisões, a fé em Cristo não deve ser usada como arma de confronto, mas como ponte de paz.
Conclusão
O encontro de São Francisco de Assis com o sultão Al-Malik Al-Kamil, em 1219, foi um gesto profético que transcendeu o seu tempo. Num contexto marcado pela guerra e pelo ódio, Francisco ousou anunciar Cristo com mansidão e respeito, mostrando que o Evangelho se transmite mais pelo testemunho de vida do que pela força.
O impacto desse acontecimento continua atual, desafiando cristãos e muçulmanos, bem como todos os homens de boa vontade, a procurar caminhos de fraternidade, diálogo e paz.