Desde os primeiros séculos do Cristianismo, os fiéis foram convidados a viver a sexta-feira como um dia especial de memória da Paixão e Morte de Jesus Cristo. Nesse espírito, a prática da abstinência de carne às sextas-feiras surgiu como uma expressão concreta de penitência e comunhão com o sacrifício redentor de Cristo. Esta tradição atravessou os séculos e permanece até hoje como um sinal exterior de fé, penitência e pertença à Igreja.
Por que a sexta-feira?
A sexta-feira tem um significado central na vida litúrgica e espiritual cristã. Foi neste dia da semana que Jesus deu a vida pela humanidade na cruz, realizando o mistério da redenção. Ao jejuar ou abster-se de carne neste dia, os fiéis unem-se simbolicamente à entrega de Cristo e assumem uma atitude de conversão interior. A penitência não é vista apenas como um sacrifício pessoal, mas como um gesto de amor e reparação.
A carne como símbolo de festa e renúncia
Historicamente, a carne foi considerada um alimento nobre, associado à celebração, fartura e prazer. Por isso, abster-se de carne simboliza a renúncia voluntária a algo bom, para oferecer a Deus um pequeno sacrifício em sinal de conversão e solidariedade com os sofrimentos de Cristo. A escolha da carne, e não de outros alimentos, não tem um fundamento moral em si, mas é uma decisão pedagógica e espiritual da Igreja, que aponta para a importância de pequenos gestos com grande significado.
O que diz o Direito Canónico?
O atual Código de Direito Canónico, promulgado por São João Paulo II em 1983, afirma no cânone 1251:
“Observe-se a abstinência de carne ou de outro alimento segundo as prescrições da Conferência Episcopal, em todas as sextas-feiras do ano, a não ser que coincidam com um dia de solenidade.”
Assim, todas as sextas-feiras do ano são dias penitenciais, salvo se coincidirem com uma solenidade litúrgica. O cânone 1253 permite que as Conferências Episcopais determinem outras formas de penitência em substituição da abstinência de carne, especialmente em países onde o consumo de carne deixou de ser visto como sinal de abundância.
E em Portugal?
Em Portugal, os bispos reiteram a importância de manter a sexta-feira como dia de penitência e convidam os fiéis a praticar a abstinência de carne ou, se tal não for possível, a substituí-la por outra forma de sacrifício ou obra de caridade. No entanto, continua a ser altamente recomendada a fidelidade à prática tradicional, sempre que possível.
Mais que uma obrigação, um gesto de amor
A abstinência de carne às sextas-feiras não deve ser vista como uma simples obrigação legalista, mas como um sinal exterior de um compromisso interior. É um meio de lembrar, com o corpo e com os hábitos diários, o centro da fé cristã: a Cruz de Cristo. Pequenos gestos, quando vividos com fé, podem fortalecer a vida espiritual, criar hábitos de autocontrole, e unir o fiel ao mistério pascal de modo concreto.
Um testemunho contracorrente
Num mundo cada vez mais orientado pelo consumo e pelo conforto, a prática da abstinência é também um testemunho contracorrente. Renunciar livremente a algo em nome de Deus é uma afirmação da liberdade interior e um sinal de que o cristão vive segundo outros valores. A abstinência pode ainda ser oferecida pelas intenções da Igreja, pela conversão dos pecadores, pelas almas do purgatório, ou por qualquer necessidade espiritual pessoal ou comunitária.
Conclusão: redescobrir o valor da penitência
Num tempo em que muitos hábitos religiosos se perdem ou se tornam apenas simbólicos, redescobrir a prática da abstinência de carne às sextas-feiras é recuperar um tesouro espiritual da tradição católica. Com simplicidade, fidelidade e consciência, este gesto semanal recorda aos fiéis que a Cruz de Cristo é o centro da vida cristã e que a nossa vida, mesmo nos detalhes quotidianos, pode ser um espaço de entrega, comunhão e sacrifício redentor.