Entre as expressões mais comoventes da piedade mariana em Portugal, destaca-se a devoção a Nossa Senhora da Soledade venerada na Real e Venerável Irmandade do Santíssimo Sacramento de Mafra.
Esta imagem, profundamente enraizada na espiritualidade e na história religiosa portuguesa, tornou-se símbolo de dor, esperança e fé silenciosa — culminando, em 2023, com a sua coroação canónica, um reconhecimento oficial do amor e veneração que o povo de Mafra lhe dedica há séculos.
Origens da devoção em Mafra
A devoção a Nossa Senhora da Soledade tem origem em Espanha, no século XVI, associada à espiritualidade franciscana e à meditação sobre a solidão de Maria após a morte de Cristo.
A devoção espalhou-se rapidamente por Portugal, encontrando expressão especial nas confrarias e irmandades dedicadas à Paixão do Senhor.
Em Mafra, esta devoção assumiu contornos singulares no século XVIII, no contexto da fundação do Real Convento e Basílica de Mafra, erguida por D. João V em cumprimento de um voto a Nossa Senhora. A Irmandade do Santíssimo Sacramento, já então existente, incorporou o culto à Soledade como parte integrante das suas celebrações da Semana Santa.
A imagem da Virgem da Soledade
A imagem de Nossa Senhora da Soledade, venerada em Mafra, é uma obra-prima do barroco português.
Esculpida em madeira policromada, apresenta Maria sentada, envolta num manto negro, com as mãos entrelaçadas e o olhar voltado para o vazio — expressão de uma dor serena e contemplativa.
A figura transmite o sofrimento da Mãe, mas também a sua fé inquebrantável na Ressurreição.
A escultura é cuidadosamente vestida com trajes de veludo negro e adornos preciosos oferecidos ao longo dos séculos pelos fiéis. O seu semblante delicado e introspectivo, de grande valor artístico, reflete o estilo joanino característico das obras ligadas à escola escultórica de Mafra.
A Real e Venerável Irmandade do Santíssimo Sacramento
A Real e Venerável Irmandade do Santíssimo Sacramento de Mafra é uma das mais antigas e prestigiadas irmandades de Portugal.
Com origens entre os séculos XVII e XVIII, esta confraria teve papel determinante na vida religiosa da vila e na organização das procissões da Semana Santa, especialmente a do Enterro do Senhor e a da Soledade, onde a imagem da Virgem assume o protagonismo central.
O título de “Real” reflete a ligação histórica da Irmandade à Casa de Bragança e ao Real Convento de Mafra, e o de “Venerável” atesta o reconhecimento canónico e o mérito espiritual da confraria.
A Procissão da Soledade
A Procissão da Soledade, que se realiza tradicionalmente na noite de Sexta-feira Santa, é um dos momentos mais marcantes da Semana Santa em Mafra.
Nela, a imagem de Nossa Senhora percorre as ruas históricas da vila, envolta em silêncio e devoção.
O andor, ornamentado com flores e lanternas, é ladeado pelos irmãos da Irmandade vestidos de roxo e negro, acompanhados por cânticos e pela música dos clarins.
Esta procissão, preservada ao longo dos séculos, é uma das mais antigas de Portugal e representa um testemunho vivo da fé do povo mafrense.
A coroação canónica de 17 de setembro de 2023
Após mais de dois séculos de veneração contínua, a imagem de Nossa Senhora da Soledade de Mafra recebeu a coroação canónica no dia 17 de setembro de 2023, durante uma solene celebração eucarística presidida pelo Cardeal D. José Tolentino de Mendonça, Prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação.
A coroação, aprovada pela Santa Sé, representou o reconhecimento oficial da importância histórica, espiritual e devocional da imagem.
Foi um acontecimento de grande significado para toda a comunidade de Mafra e para o país, reunindo fiéis, autoridades e representantes de diversas instituições religiosas e civis.
Durante a cerimónia, o Cardeal Tolentino destacou a dimensão materna e compassiva de Maria, recordando que a Virgem da Soledade ensina a permanecer firme na fé mesmo nos momentos de ausência e silêncio de Deus.
A coroa, colocada solenemente sobre a cabeça da imagem, simboliza a vitória da fé sobre a dor e o amor que une o céu e a terra.
Significado espiritual e cultural da coroação
A coroação canónica é um ato de veneração e reconhecimento papal concedido a imagens de Nossa Senhora de especial importância devocional.
No caso de Mafra, esta coroação não apenas honrou séculos de fé, mas também reforçou o papel de Nossa Senhora da Soledade como padroeira espiritual do povo mafrense e guardiã das tradições da Irmandade.
O evento inscreveu-se entre os momentos mais relevantes da história religiosa recente de Portugal, aproximando ainda mais o património espiritual de Mafra da identidade católica do país.
Nossa Senhora da Soledade na atualidade
Atualmente, a imagem coroada de Nossa Senhora da Soledade permanece venerada na Basílica do Palácio Nacional de Mafra, onde continua a atrair peregrinos e devotos de todo o país.
A Irmandade do Santíssimo Sacramento prossegue o seu trabalho de preservação das tradições religiosas, da música sacra, do património artístico e da espiritualidade mariana que fazem de Mafra um verdadeiro centro de devoção.
A Procissão da Soledade, agora enriquecida pelo significado da coroação, continua a ser o ponto alto da Semana Santa mafrense — uma manifestação pública de fé que une passado e presente numa mesma entrega a Maria, Mãe da Soledade e Rainha de Misericórdia.
Conclusão
A Nossa Senhora da Soledade de Mafra é mais do que uma imagem ou uma tradição: é um elo vivo entre o povo e Deus.
Desde o século XVIII até à sua coroação canónica em 2023, a Mãe Dolorosa tem sido consolo dos fiéis e testemunho do amor incondicional que nasce da fé.
O silêncio da Soledade fala — e o seu olhar, agora coroado, continua a iluminar Mafra com a esperança de quem, mesmo na dor, confia plenamente na promessa da Ressurreição.