A encíclica Pacem in Terris (“Paz na Terra”) é uma das mais importantes e influentes da história contemporânea da Igreja Católica. Publicada a 11 de abril de 1963 pelo Papa João XXIII, apenas dois meses antes da sua morte, tornou-se um marco no pensamento social católico e um documento de alcance universal.
Pela primeira vez, uma encíclica não era dirigida apenas aos fiéis católicos, mas “a todos os homens de boa vontade”, expressando o desejo do Papa de dialogar com toda a humanidade sobre o valor supremo da paz fundada na verdade, na justiça, no amor e na liberdade.
Contexto histórico
A Pacem in Terris surgiu num dos períodos mais tensos do século XX. O mundo vivia o auge da Guerra Fria, poucos meses após a Crise dos Mísseis de Cuba (1962), que colocara os Estados Unidos e a União Soviética à beira de um conflito nuclear.
Ao mesmo tempo, o Papa João XXIII conduzia o Concílio Vaticano II, iniciado em 1962, procurando renovar a Igreja e promover o diálogo com o mundo moderno.
Num contexto de medo, corrida armamentista e divisão ideológica, o Papa, já gravemente doente, quis deixar à humanidade uma mensagem de esperança e de confiança na razão, no diálogo e na dignidade humana. Assim nasceu Pacem in Terris — a sua última grande palavra profética.
Estrutura da Encíclica
O documento é extenso e cuidadosamente estruturado, dividido em cinco grandes partes:
1. A ordem entre os homens
João XXIII fundamenta a paz sobre os direitos e deveres da pessoa humana, criados por Deus e inscritos na lei natural. Defende que a verdadeira ordem social deve respeitar a dignidade humana, e enumera, de modo pioneiro, uma lista de direitos humanos — civis, políticos, sociais e económicos — muito antes de estes serem universalmente reconhecidos.
“Todo o ser humano tem direito à existência, à integridade física, aos meios necessários para o sustento da vida, ao trabalho, à boa fama, à verdade e à liberdade.”
Esta parte é considerada uma antecipação católica da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), aprofundando-a à luz da fé cristã.
2. As relações entre o homem e a autoridade pública
O Papa reflete sobre a legitimidade do poder político, afirmando que este deve estar ao serviço do bem comum e da justiça, e não baseado na força.
Rejeita o totalitarismo e o autoritarismo, mas também alerta contra a anarquia e a ausência de autoridade moral.
“A autoridade deve ser expressão da ordem moral e deve exercer-se dentro dos limites do direito e da razão.”
3. As relações entre os Estados
João XXIII defende a igualdade essencial entre as nações — grandes ou pequenas, ricas ou pobres — e afirma que as relações internacionais devem basear-se na verdade, na justiça, na solidariedade e na liberdade.
O Papa rejeita a guerra como meio legítimo de resolução de conflitos e apela ao desarmamento nuclear e ao fortalecimento do direito internacional.
“Não se pode admitir que, numa era em que os homens alcançaram o domínio da energia atómica, a guerra seja usada como instrumento de justiça.”
4. A relação entre os povos e as comunidades políticas
Esta secção introduz uma novidade histórica: a necessidade de uma autoridade pública mundial, dotada de poder suficiente para promover o bem comum universal, salvaguardando a liberdade das nações.
Sem usar linguagem política direta, João XXIII antecipa a necessidade de instituições internacionais como as Nações Unidas e o direito internacional moderno.
“O bem comum da família humana exige uma autoridade pública mundial, instituída por consentimento de todas as nações e dotada de meios eficazes para o realizar.”
5. Direção espiritual e apelo à paz
Na parte final, o Papa volta-se para os valores morais e espirituais que sustentam a paz: a verdade, a justiça, o amor e a liberdade.
Estes quatro pilares, diz João XXIII, são o alicerce de uma convivência humana verdadeiramente pacífica.
“A paz na terra, que os homens de todas as épocas desejaram ardentemente, só poderá ser firmemente estabelecida e consolidada quando a ordem estabelecida por Deus for respeitada.”
A encíclica termina com um apelo emocionado à confiança no diálogo entre os povos, as religiões e as ideologias — um gesto ousado em plena Guerra Fria.
Impacto imediato
A Pacem in Terris teve um impacto extraordinário tanto dentro como fora da Igreja.
No mundo político e diplomático
Foi acolhida com entusiasmo por líderes políticos, intelectuais e diplomatas de todos os lados da Guerra Fria.
Pela primeira vez, um documento papal foi citado em fóruns da ONU e debatido nas universidades seculares.
Mesmo líderes não católicos, como John F. Kennedy e Nikita Khrushchev, elogiaram publicamente o tom conciliador e a mensagem humanista da encíclica.
Na Igreja Católica
Internamente, Pacem in Terris reforçou o espírito de abertura e diálogo que João XXIII desejava para o Concílio Vaticano II.
Influenciou diretamente constituições conciliares como a Gaudium et Spes (1965), que retoma os temas da dignidade humana, da justiça social e da paz.
No pensamento social cristão
A encíclica marca uma viragem: o Magistério da Igreja passa a dialogar com o mundo moderno de forma positiva, promovendo a colaboração entre crentes e não crentes na construção de um mundo mais justo.
Esta orientação foi continuada pelos Papas seguintes, especialmente por Paulo VI (Populorum Progressio, 1967) e João Paulo II (Centesimus Annus, 1991).
Consequências e legado duradouro
A Pacem in Terris é hoje considerada um documento fundacional da doutrina social contemporânea da Igreja.
As suas consequências foram múltiplas:
- Reafirmação da dignidade humana — tornou-se referência moral na defesa dos direitos humanos e da liberdade religiosa.
- Base ética para a diplomacia vaticana — serviu de guia para a Santa Sé na sua atuação internacional, promovendo o desarmamento e a mediação de conflitos.
- Inspiração para a ONU — o Papa Paulo VI, ao discursar nas Nações Unidas em 1965, citou expressamente Pacem in Terris como fundamento moral da cooperação entre povos.
- Diálogo inter-religioso e ecuménico — abriu caminho para a cooperação entre cristãos, judeus, muçulmanos e não crentes na busca da paz.
- Influência no ensino social e político — continua a ser estudada em universidades, movimentos católicos e escolas de pensamento ético internacional.
Conclusão
A Pacem in Terris permanece uma das encíclicas mais luminosas e universais da história da Igreja.
Escrita por um Papa idoso e doente, num mundo dividido pelo medo e pela ameaça nuclear, o seu tom sereno e confiante elevou a voz da Igreja acima das ideologias e fronteiras.
João XXIII mostrou que a paz não é apenas ausência de guerra, mas presença de justiça, amor e verdade.
O seu apelo — “a todos os homens de boa vontade” — continua atual num mundo ainda ferido por conflitos, desigualdades e divisões.
“A paz deve ser edificada sobre a verdade, construída sobre a justiça, animada pelo amor e realizada na liberdade.”
— Pacem in Terris, n.º 167