Neste dia, em 1931, o regime comunista russo demolia uma das mais famosas igrejas de Moscovo

A Catedral de Cristo Salvador é uma das histórias mais dramáticas da relação entre Igreja, Estado e identidade nacional na Rússia: um monumento erguido em memória de uma vitória, destruído pela ideologia comunista e, depois, reconstruído como símbolo do ressurgimento ortodoxo e do patriotismo pós-soviético.

Por que nasceu o templo? (1812 → século XIX)

A ideia de erguer um grande templo dedicado a Cristo Salvador surgiu como voto de gratidão pela preservação da Rússia durante a invasão napoleónica. Em 1812, perante a retirada de Napoleão, o czar Alexandre I propôs a construção de um grande templo em Moscovo que celebrasse essa salvação nacional. A ideia perpassou décadas de debates, projetos e mudanças de programa arquitetónico até se concretizar no desenho final do arquiteto Karl Magnus Vitberg. O projeto aprovado era inspirado na tradição bizantino-russa, numa linguagem monumental que pretendia ligar a dinastia, a Igreja e a pátria.

A pedra-angular da obra de Thon foi lançada em 1839; a construção prolongou-se por décadas e o templo acabaria por ser consagrado apenas em 26 de maio de 1883, nos primeiros meses do reinado de Alexandre III — data próxima da sua coroação — tornando-se então no maior e mais prestigioso templo ortodoxo de Moscovo. A cúpula dourada, o interior ricamente decorado e a iconóstase monumental transformaram a igreja num símbolo da fé e do Estado russo.

A vida do templo imperial (1883–1917/1931)

Entre 1883 e a Revolução de 1917 a Catedral de Cristo Salvador foi palco de cerimónias imperiais, grandes festas litúrgicas, concertos e atos públicos. Era um símbolo claro da aliança entre o trono e o altar: monumento religioso e monumento nacional. Após 1917, com a tomada bolchevique do poder, a sua função simbólica tornou-se incómoda para o novo regime: a ortodoxia estava associada ao antigo regime e à identidade nacional que os comunistas desejavam transformar.

Demolição: o projecto megalómano e a ordem de 1931

No contexto das políticas antirreligiosas e da grande ambição arquitectónica soviética, Joseph Stalin e a liderança bolchevique decidiram erradicar o velho símbolo. Em 5 de dezembro de 1931 teve início a demolição da catedral — um processo que consumiu meses, durante os quais foram saqueadas obras, ícones e materiais de valor. A intenção oficial era construir no local o monumental Palace of the Soviets (Palácio dos Sovietes), um arranha-céus de propaganda socialista que incluiria, entre outras coisas, um enorme pedestal e uma estátua colosal de Lénine. O projecto seria, contudo, abortado por múltiplas razões (dificuldades de engenharia, mudança de prioridades, a Segunda Guerra Mundial).

Do ponto de vista simbólico, a destruição foi um acto de ruptura: a paisagem religiosa e patrimonial de Moscovo foi propositadamente riscada para afirmar a nova ordem secular e ateia. O mármore e o granito resultantes da demolição serviram para revestir estações do metro e outras obras públicas — vestígios materiais do templo que passaram a integrar a nova cidade soviética.

O terreno após a demolição: do projecto colossal ao “Moskva Pool”

Com a demolição concluída, as obras do Palace of the Soviets começaram mas não foram levadas até ao fim; as fundações foram iniciadas, porém a eclosão da Segunda Guerra Mundial e o desvio de recursos fizeram cessar o projecto. Mais tarde, durante a era Khrushchov-Brezhnev, o local foi transformado numa grande piscina ao ar livre, o chamado Moskva Pool — por décadas o maior complexo de natação exterior do mundo — um uso simbolicamente irónico: no antigo sítio do maior templo da Rússia, a praça abrigava lazer e utilidade pública em vez de adoração.

O renascimento: reconstrução no fim do século XX

Com o colapso da URSS e a nova configuração política e cultural da Rússia, surgiu rapidamente um movimento de restauração simbólica: reconstruir o templo como sinal da recuperação religiosa e identitária. A reconstrução da Catedral de Cristo Salvador foi decidida nos anos 1990 e realizada por donativos públicos e privados. O projecto procurou reproduzir a aparência externa do templo de Thon, ao mesmo tempo que adaptava técnicas e materiais modernos; participação de figuras políticas e artistas tornaria a obra central na reinvenção do espaço público moscovita.

A construção da “nova” catedral avançou ao longo da década de 1990 e terminou no limiar do novo milénio: a obra foi concluída em 1999 e a consagração principal — com a presença do Patriarca Alexy II — realizou-se em 1999/2000 (acontecimento solene em 19 de agosto de 2000 é frequentemente citado como a data simbólica de reconsagração). A nova catedral, imponente e tecnicamente moderna, tornou-se rapidamente um dos centros litúrgicos e patriarcais da Igreja Ortodoxa Russa contemporânea.

Arquitectura e características da reconstrução

A catedral erguida no fim do século XX mantém a linguagem historicista: grandes cúpulas douradas, fachada monumental, uso de mármore e mosaicos, iconóstase rica e obras de arte sacra realizadas por artistas contemporâneos. Tem cerca de 103 metros de altura, sendo uma das maiores igrejas ortodoxas do mundo. O interior foi trabalhado com atenção ao património litúrgico (coro, capelas laterais, criptas com memoriais) e com instalações para grandes celebrações patriarcais.

Impacto cultural, espiritual e político

Significado religioso e social

A reconstrução foi encarada por muitos como restauração da memória e da dignidade religiosa pós-ateísta: após décadas de perseguição, a Igreja reconquistava um espaço central no coração da capital. A catedral tornou-se sede de grandes celebrações, local de peregrinação e símbolo do ressurgimento ortodoxo. Além disso, eventos públicos importantes — como o funeral do ex-presidente Boris Yeltsin (2007) — foram celebrados ali, sublinhando o papel cívico-religioso do templo.

Aspecto político e polémicas

A reconstrução também suscitou debates: críticos apontaram o envolvimento de políticos locais e de oligarcas, a estética do projeto (alguns viram excessos ou um historicismo kitsch) e a centralidade simbólica da Igreja em novos arranjos de identidade nacional. O papel do escultor e construtor Zurab Tsereteli (entre outros) e o financiamento e coordenação levantaram discussões sobre a combinação de interesses públicos, privados e eclesiásticos. Para alguns, a reedição do monumento era genuíno regresso espiritual; para outros, era parte de um processo híbrido de reconstrução identitária com motivações políticas.

Memória e lições históricas

A vida da Catedral de Cristo Salvador — idealizada como voto de gratidão, erigida, demolida e depois reconstruída — é um ícone histórico das tensões entre fé e poder, entre memória e ruptura. A demolição de 1931 mostra como regimes totalitários tentaram apagar símbolos religiosos para impor novas narrativas; a reconstrução pós-1991 mostra igualmente como símbolos religiosos podem ser reapropriados para reforçar identidades nacionais e espirituais. Para o católico (e para o cristão em geral), a história recorda tanto o sofrimento das comunidades religiosas sob regimes ateus quanto a capacidade de recuperação e perdão que a fé pode inspirar.

Conclusão

A Catedral de Cristo Salvador não é apenas um edifício: é um relato em pedra da história russa moderna. Do voto de 1812, passando pela glória imperial, pela destruição ideológica e pelo renascimento simbólico, a catedral narra o confronto entre sacralidade e utopia política. Hoje, no centro de Moscovo, ela permanece aberta ao culto e à contemplação — um sinal de que, mesmo depois de tentativas de erradicação física e simbólica, as memórias religiosas podem renascer e dar nova forma à vida espiritual e pública de um povo.

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