Neste dia, em 1073, era instituído o título de Camerlengo

O título de Camerlengo da Santa Igreja Romana (Camerlengo di Santa Romana Chiesa) é uma das mais antigas e solenes dignidades da Cúria Romana. Ligado ao governo temporal da Igreja e, em especial, à administração do Vaticano durante o período de Sede Vacante — quando o trono papal está vago —, o cargo de Camerlengo tem raízes medievais e representa um elo direto entre a organização administrativa da Santa Sé e a continuidade do poder pontifício.

Origens históricas do cargo

A palavra Camerlengo deriva do latim camerarius, que significa “oficial da câmara” ou “tesoureiro”. Nos primórdios da Igreja, a Camera Apostolica era o órgão responsável pela administração financeira dos bens temporais do papado.

O título surgiu formalmente no século XI, embora funções semelhantes existissem desde antes. Até o  século XI , o arquidiácono da Igreja Romana era responsável pela administração das propriedades da Igreja (ou seja, a Diocese de Roma ), mas os numerosos privilégios e direitos antigos frequentemente tornaram-se um obstáculo à ação papal independente. Como resultado, quando o último arquidiácono, Hildebrando de Cluny, foi eleito papa como Gregório VII em 1073, ele suprimiu o arquidiácono, e o cardeal encarregado da supervisão da Câmara Apostólica, ou seja, o governo temporal da Santa Sé, ficou conhecido como camerarius ou camerlengo.

O Papa Urbano II (1088–1099) e os seus sucessores estruturaram a Cúria Romana de forma mais organizada, e o Camerlengo passou a ser o administrador principal das finanças da Santa Sé.

Durante a Idade Média, o Camerlengo tinha enorme influência. Supervisionava as receitas e despesas do Papa, administrava as propriedades da Igreja e era responsável pela arrecadação dos tributos eclesiásticos. Em períodos de ausência do Papa — ou, mais tarde, de vacância do trono —, assumia temporariamente a administração temporal do Estado Pontifício.

Com o passar dos séculos, e especialmente após a centralização administrativa ocorrida entre os séculos XIV e XVI, o Camerlengo tornou-se uma figura essencial tanto na vida económica como na transição de autoridade entre pontificados.

O papel do Camerlengo durante a Sede Vacante

A principal função do Camerlengo é exercida no período conhecido como Sede Vacante, que começa com a morte ou renúncia do Papa e termina com a eleição do novo pontífice.

Tradicionalmente, é o Camerlengo quem verifica oficialmente a morte do Papa. Seguindo um antigo ritual, ele chama o Papa três vezes pelo nome de batismo. Após a ausência de resposta, declara a morte e manda preparar o selo do Papa, que é quebrado em cerimónia solene, simbolizando o fim do pontificado.

Durante o período sem Papa, o Camerlengo administra os assuntos temporais do Vaticano, embora não possa tomar decisões que envolvam o governo espiritual da Igreja ou mudanças de grande alcance. Ele supervisiona o Colégio dos Cardeais, garante o funcionamento dos serviços administrativos e preserva os bens e arquivos do Vaticano.

Também lhe cabe organizar o funeral do Papa, cuidar das formalidades do luto e coordenar as reuniões preparatórias (as congregações gerais e particulares) que antecedem o conclave.

Além disso, o Camerlengo tem a função de selar os aposentos pontifícios, proteger os documentos e os bens pessoais do Papa falecido e zelar pelo bom funcionamento do Estado da Cidade do Vaticano até que o novo Papa seja eleito.

Evolução do cargo e reformas recentes

Com o fim dos Estados Pontifícios em 1870 e a posterior criação do Estado da Cidade do Vaticano em 1929, o papel do Camerlengo tornou-se mais simbólico e administrativo do que político. Ainda assim, mantém-se uma função de grande responsabilidade, sendo o guardião da continuidade institucional da Igreja.

A legislação moderna relativa ao cargo foi consolidada na Constituição Apostólica Universi Dominici Gregis (1996), promulgada por São João Paulo II, e posteriormente atualizada pelo Papa Francisco. Este documento define, de forma precisa, o papel do Camerlengo durante a Sede Vacante e os limites do seu poder.

O Camerlengo é nomeado diretamente pelo Papa e exerce o cargo por tempo indeterminado, até nova nomeação pontifícia. Costuma ser um cardeal com experiência administrativa ou financeira, e é assistido por um Vice-Camerlengo e por três Cardeais Assistentes, escolhidos durante a vacância.

Símbolos e insígnias

O Camerlengo possui insígnias próprias, que simbolizam o seu papel de guardião da Igreja em tempos de transição. A principal é o anel do Camerlengo, que substitui o anel do Pescador após a morte do Papa.

O seu brasão de armas inclui, sobre o escudo cardinalício, o ombrellino (ou guarda-sol papal), símbolo da Igreja em estado de vacância, acompanhado das chaves cruzadas de São Pedro. Durante a Sede Vacante, o ombrellino também aparece sobre o brasão oficial do Vaticano, substituindo o tiara papal.

Personalidades notáveis que exerceram o cargo

Ao longo da história, muitos cardeais de destaque ocuparam o título de Camerlengo. Entre eles:

  • Raffaele Riario (século XV), sobrinho do Papa Sisto IV, que teve papel relevante na reorganização financeira da Santa Sé;
  • Gioacchino Pecci, que viria a tornar-se Papa Leão XIII;
  • Cardeal Eugenio Pacelli, que foi Camerlengo antes de ser eleito Papa Pio XII;
  • Cardeal Eduardo Martínez Somalo, Camerlengo durante a morte de São João Paulo II em 2005;
  • Cardeal Tarcisio Bertone, que exerceu o cargo aquando da renúncia de Bento XVI;
  • e atualmente, o Cardeal Kevin Farrell, nomeado pelo Papa Francisco em 2019.

Curiosidades e simbolismo espiritual

O papel do Camerlengo é também profundamente espiritual. Ele representa a fidelidade da Igreja ao seu Senhor, mesmo quando o trono de Pedro está vazio. O seu trabalho discreto, mas indispensável, assegura que a Igreja nunca entre em desordem e que a sucessão apostólica prossiga sem interrupções.

Curiosamente, durante o período de Sede Vacante, é o Camerlengo quem mais se destaca publicamente, uma vez que todas as decisões administrativas passam pelas suas mãos. Contudo, o seu poder é sempre limitado e temporário — um lembrete simbólico de que a autoridade suprema na Igreja pertence unicamente ao Papa, Vigário de Cristo.

Conclusão

O título de Camerlengo da Santa Igreja Romana é um dos mais antigos e significativos da estrutura eclesiástica. Das suas origens como tesoureiro da Cúria até ao seu papel atual como guardião da transição papal, o Camerlengo encarna a continuidade, prudência e fidelidade da Igreja em tempos de mudança.

Mais do que um administrador, o Camerlengo é o guardião da memória do Papa e da estabilidade da Igreja. A sua missão, discreta mas essencial, recorda que, mesmo nos períodos de silêncio e espera entre pontificados, a barca de Pedro nunca fica sem rumo — porque Cristo, seu verdadeiro timoneiro, continua a conduzi-la através da história.

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