A devoção a Nossa Senhora de Kazan, também chamada Theotokos de Kazan, é uma das mais profundas e veneradas tradições marianas da Igreja Ortodoxa Russa e também reconhecida no âmbito católico. A sua história mistura piedade popular, política e diplomacia internacional, especialmente no que diz respeito à recuperação da imagem e à sua devolução à Rússia, após séculos de desaparecimento e deslocações. A sua festa é celebrada a 21 de julho e 4 de novembro, que também é o Dia da Unidade Nacional Russa.
Origem da devoção
A tradição remonta a 1579, na cidade de Kazan, quando a Rússia vivia momentos de instabilidade após invasões e incêndios devastadores.
Uma menina chamada Matrona, de apenas 9 anos, terá visto em sonhos a Virgem Maria a indicar-lhe o local onde se encontrava uma imagem escondida sob as cinzas de uma casa destruída por um incêndio.
Após insistência da menina, a escavação foi feita, e a imagem foi encontrada intacta, reluzente, o que foi imediatamente interpretado como um sinal divino.
A iconografia representava a Mãe de Deus com o Menino Jesus no braço esquerdo, numa expressão de ternura e proteção. A descoberta foi considerada milagrosa e rapidamente a devoção se espalhou por toda a Rússia.
Símbolo nacional da Rússia
A imagem de Nossa Senhora de Kazan tornou-se um dos ícones mais venerados da Rússia. Foi associada a vitórias militares sobre invasores, como a libertação de Moscovo dos polacos em 1612.
Czares e líderes políticos promoviam procissões e celebrações diante da imagem. Foi chamada “Protetora da Santa Rússia”.
O ícone original ficou guardado na cidade de Kazan até ao século XX, embora várias cópias tivessem sido espalhadas por todo o território.
O desaparecimento da imagem
Em 1904, durante o período turbulento que precedeu a Revolução Russa, o ícone original foi roubado da catedral de Kazan.
Muitos acreditaram que tinha sido destruído ou vendido clandestinamente. O desaparecimento foi sentido como um presságio de tempos difíceis que se avizinhavam, com a Revolução de 1917 e a perseguição religiosa imposta pelo regime soviético.
Reaparecimento no Ocidente
Na década de 1970, um ícone identificado como o original de Kazan apareceu no mercado de arte, em circunstâncias nunca totalmente esclarecidas.
Foi adquirido por colecionadores católicos e acabou por ser comprado em 1970 pelo movimento católico “Exército Azul de Nossa Senhora de Fátima”, em Portugal.
O objetivo era protegê-lo e conservá-lo em Fátima, aguardando o momento oportuno para devolvê-lo à Igreja Ortodoxa Russa.
Durante anos, a imagem foi venerada no Santuário de Nossa Senhora de Fátima, no chamado “Domus Pacis”.
O interesse da Santa Sé
O ícone foi entregue ao Vaticano, onde se tornou um sinal de diálogo ecuménico entre católicos e ortodoxos.
O Papa João Paulo II tinha grande devoção à imagem e chegou a colocá-la na sua capela privada, rezando frequentemente diante dela. Para o Papa polaco, Nossa Senhora de Kazan representava um elo espiritual capaz de unir a Rússia e o Ocidente cristão, num tempo em que o comunismo ainda dominava o Leste europeu.
A devolução à Rússia
Após a queda da União Soviética (1991), abriram-se novas possibilidades de diálogo.
Em várias ocasiões, João Paulo II expressou o desejo de devolver pessoalmente a imagem à Rússia, como gesto de reconciliação. Contudo, dificuldades políticas e reservas do Patriarcado de Moscovo quanto à intenção do Vaticano impediram a realização dessa visita.
Finalmente, em agosto de 2004, já debilitado pela doença, João Paulo II decidiu enviar o ícone oficialmente à Rússia.
A entrega foi feita através de uma delegação vaticana, e a imagem foi acolhida pelo Patriarcado Ortodoxo de Moscovo, depositada em Kazan.
No dia 21 de agosto de 2004, a imagem foi colocada com grande solenidade na Catedral da Anunciação, no Kremlin de Kazan.
O impacto da devolução
O regresso da imagem foi visto como um gesto de boa vontade e respeito da Igreja Católica para com a Ortodoxa.
Representou um marco no caminho do ecumenismo, apesar das tensões que ainda persistem. Para os fiéis russos, foi o retorno de um símbolo identitário e espiritual de grande importância.
Em 2005, por ocasião do milénio da diocese de Kazan, a imagem foi solenemente entronizada na Basílica da Anunciação da cidade.
Nossa Senhora de Kazan hoje
Atualmente, a imagem continua em Kazan, venerada por milhares de peregrinos, católicos e sobretudo ortodoxos.
- É considerada padroeira e protetora da cidade e da Rússia.
- Cópias do ícone estão presentes em muitas igrejas e lares russos, mantendo viva a tradição da sua intercessão.
- Continua a ser evocada como sinal de unidade e reconciliação entre cristãos de diferentes tradições.
Conclusão
A história de Nossa Senhora de Kazan vai além da descoberta milagrosa no século XVI. O seu desaparecimento, reaparecimento no Ocidente e posterior devolução à Rússia refletem não só o poder de um símbolo religioso, mas também a sua dimensão política e diplomática. A decisão de João Paulo II de devolver o ícone em 2004 permanece um dos gestos mais emblemáticos do seu pontificado, lembrando que Maria, sob o título de Nossa Senhora de Kazan, continua a ser para milhões de fiéis um símbolo de paz, unidade e proteção espiritual.