No dia 2 de março de 2019, na sequência do que tinha anunciado um ano antes, o Papa Francisco permitiu que os arquivos do Vaticano, referentes ao pontificado de Pio XII (1939-1958), fossem abertos aos historiadores e interessados.
A motivação oficial foi que a Igreja “não tem medo da História” e que desejava permitir um exame objetivo dos acontecimentos daquele período, em particular no que toca às acusações de omissão durante o Holocausto.
Antes disso, o questionamento público sobre o papel de Pio XII durante a Segunda Guerra Mundial era intenso: críticos afirmam que ele permaneceu silencioso diante das atrocidades nazis; defensores sustentam que ele atuou nos bastidores, ajudando judeus, conventos, diplomacia oculta.
O que os documentos revelam: série “Judeus” e pedidos de ajuda
Uma parte importante dos documentos agora acessíveis é a série chamada “Judeus” (Ebrei), que pertence ao Arquivo Histórico da Secretaria de Estado – Seção de Relações com Estados e Organizações Internacionais (ASRS).
São 170 volumes, correspondendo a cerca de 40 mil documentos digitalizados, que contêm pedidos de ajuda dirigidos ao Papa Pio XII por judeus batizados ou não, de várias partes da Europa perseguidas pelos regimes nazis.
O historiador do Vaticano, Johan Ickx, aponta que entre 1938 e 1944 houve cerca de 2.800 pedidos de intervenção junto da Santa Sé, solicitando ajuda para evitar deportações, procura de refúgio, reagrupamentos familiares ou intervenção diplomática.
Há também indícios de que o Vaticano falsificou documentos ou forneceu documentos de proteção para judeus, ou que colaborou com religiosos e nunções para esconder perseguidos em instituições católicas.
As controvérsias históricas
A principal crítica contra Pio XII tem sido o seu silêncio público diante do genocídio. Alguns historiadores afirmam que ele poderia ter feito mais ao condenar de forma clara o regime nazista e suas políticas racistas.
Defensores argumentam que uma condenação pública mais forte poderia ter provocado repressões ainda maiores contra católicos e judeus, e que o Papa atuou com prudência, dissimulação diplomática e ajuda prática, às vezes secreta, para salvar vidas.
Alguns investigadores apontam manobras como falsificação ou emissão de documentos de proteção ou “certificados de batismo” para judeus, para que pudessem ser considerados católicos e, assim, escapar de perseguições. Esses casos surgem em documentos da nova série “Judeus”.
Contribuições específicas identificadas até agora
Os documentos confirmam que judeus perseguidos enviavam apelos diretos ao Papa, considerados um recurso de última instância. Muitas vezes esperavam que Roma interviesse. Isso mostra que, para muitos judeus, o Papa Pio XII era visto como protetor e aliado.
Entre a ajuda recebida há casos de abrigos em conventos ou instituições católicas, facilitação de documentos para fuga ou deslocamento, intervenção diplomática em situações críticas.
A digitalização e disponibilização desses volumes online tornaram possível a consulta mais ampla dos documentos, o que permite novos estudos históricos com base documental.
O impacto dessas revelações para a avaliação histórica de Pio XII
Com os arquivos abertos, muitos historiadores têm reavaliado críticas duradouras, inclusive acusações de cumplicidade ou silêncio vergonhoso. Alguns já afirmam que os documentos derrubam caricaturas extremadas de Pio XII, tanto as que o acusavam como “Papa de Hitler” quanto aquelas que o pintavam como totalmente heróico sem sombras.
Autoridades do Vaticano sustentam que a transparência fortalece a relação da Igreja com comunidades judaicas e com a historiografia moderna.
Contudo, ainda existem lacunas: os documentos não mostrarem com clareza todas as decisões internas, nem os momentos delicados de quando ponderava se deveria fazer declarações públicas ou não. Esse julgamento histórico exige análise cuidadosa e imparcial.
Conclusão
A abertura dos arquivos do pontificado de Pio XII representa um ato de enorme importância espiritual e historiográfica.
Ela permite que se conheça melhor o homem, Papa e Pastor que governou a Igreja num dos períodos mais sombrios da história moderna. Os documentos até agora revelados demonstram que, de facto, Pio XII e o seu gabinete atuaram para salvar judeus, responderam a milhares de pedidos, e colaboraram com instituições católicas para oferecer refúgio ou proteção.
Embora os registros ainda não forneçam respostas exaustivas para todas as críticas — especialmente no que respeita ao silêncio público em determinados momentos —, parece cada vez mais claro que o Papa agiu movido por uma combinação de compaixão, prudência pastoral e crença de que era possível salvar vidas usando os meios diplomáticos e discretos, sem provocar piores consequências.
Para os fiéis, esse processo de revelação pode ser visto como parte do cuidado das raízes da fé: reconhecer tanto as virtudes como os limites humanos, valorizar a misericórdia e aprender com a história, para que a Igreja continue a crescer em verdade, justiça e caridade.