A devoção ao Sagrado Coração de Jesus é uma das expressões mais profundas e universais da espiritualidade católica, simbolizando o amor infinito de Cristo pela humanidade. Ao longo dos séculos, esta devoção foi amadurecendo através da Sagrada Escritura, da meditação dos Padres da Igreja, de experiências místicas e de revelações particulares, até ser oficialmente reconhecida e promovida pela Igreja.
A Solenidade do Sagrado Coração de Jesus – Dia de Oração pela Santificação dos Sacerdotes – é celebrada na sexta-feira a seguir a Solenidade do Corpo de Deus (Corpus Christi), visto que a Eucaristia/Corpus Christi nada mais é que o próprio Coração Jesus, um “Coração” que “cuida” de nós.
Fundamentos bíblicos e patrísticos
A origem da devoção encontra-se na própria Sagrada Escritura, ainda que não de forma explícita. Alguns episódios são fundamentais.
O coração de Cristo trespassado na cruz: no Evangelho de São João (Jo 19, 34), o soldado trespassa o lado de Jesus com uma lança, de onde jorram sangue e água. Os Padres da Igreja interpretaram este gesto como símbolo da entrega total de Cristo e do nascimento da Igreja a partir do seu Coração aberto.
O convite de Jesus ao descanso no seu coração: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo… aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração” (Mt 11, 28-29).
Para Santo Agostinho, São Gregório Magno e outros Padres da Igreja, o coração de Cristo era símbolo da sua humanidade, do seu amor e da sua misericórdia.
Assim, desde os primeiros séculos, o Coração de Jesus foi contemplado como lugar da intimidade divina, do amor redentor e da fonte dos sacramentos.
A devoção na Idade Média
A partir do século XI, esta espiritualidade ganhou maior expressão:
- São Bernardo de Claraval (†1153) meditou sobre as chagas e o Coração de Cristo como fonte de amor e refúgio dos fiéis.
- Santa Gertrudes, a Magna (†1302) e Santa Matilde de Hackeborn (†1298), monjas beneditinas alemãs, tiveram revelações místicas em que o Coração de Jesus lhes foi apresentado como um fogo de amor e compaixão.
- No século XIII, Santo Alberto Magno e o seu discípulo São Tomás de Aquino também refletiram sobre o Coração de Cristo como expressão suprema do amor divino.
No entanto, esta devoção permanecia ainda restrita a círculos monásticos e de espiritualidade mais íntima.
Santa Margarida Maria Alacoque e as revelações de Paray-le-Monial
A grande expansão da devoção ao Sagrado Coração deve-se às revelações de Cristo à religiosa Santa Margarida Maria Alacoque (1647-1690), monja da Ordem da Visitação, em Paray-le-Monial, França.
Margarida Maria Alacoque viveu no convento francês de Paray-le-Monial, desde 1671. Já tinha fama de grande mística quando, a 27 de Dezembro de 1673, recebeu a primeira visita de Jesus, que a convidou a tomar o lugar, na celebração da Última Ceia, que pertencia a João, o único apóstolo que, fisicamente, encostou a cabeça no peito de Jesus. E disse-lhe: “Meu divino coração é tão apaixonado de amor pelos homens que, não podendo conter em si as chamas da sua ardente caridade, precisa da tua ajuda para difundi-las. Por isso, escolhi-te a ti para este grande desígnio”.
No ano seguinte, Margarida teve outras duas visões: na primeira, viu o coração de Jesus num trono em chamas, mais brilhante que o sol e mais transparente que o cristal, circundado por uma coroa de espinhos; na segunda, viu o coração de Cristo, fulgurante de glória, que emitia chamas por todos os lados, como uma fornalha. Conversando com ela, Jesus pediu-lhe para “comungar, todas as primeiras sextas-feiras do mês”, durante nove meses consecutivos e “prostrar-se no chão por uma hora”, na noite entre quinta e sexta-feira. Deste modo, nasceram as práticas das Nove sextas-feiras e da hora Santa de Adoração.
Numa quarta visão, Cristo pediu a Margarida que fosse instituída uma festa em honra do seu Sagrado Coração e orações em reparação das ofensas por Ele recebidas. Esta festa passou a ser obrigatória em toda a Igreja, a partir de 1856, por ordem de Pio IX. Neste mesmo dia, em 1995, São João Paulo II instituiu o “Dia Mundial de Oração pela Santificação do Clero”, para que o sacerdócio fosse protegido pelas mãos de Jesus, ou melhor, pelo seu Coração, para ser aberto a todos.
Margarida Maria contou com o apoio de São Cláudio de la Colombière, seu confessor, que confirmou a autenticidade das revelações e promoveu a devoção.
Resistência inicial e difusão da devoção
Nos primeiros tempos, a devoção encontrou resistência entre alguns teólogos e setores da Igreja, que a viam como sentimentalista. No entanto, o seu carácter profundamente cristológico e eucarístico acabou por prevalecer.
Nos séculos XVII e XVIII, ordens religiosas como os jesuítas desempenharam papel fundamental na propagação do culto ao Sagrado Coração. A devoção espalhou-se rapidamente pela França, Itália, Espanha, Portugal e depois para o mundo inteiro.
A consagração da França e a ligação política
Em 1689, Jesus pediu, através de Santa Margarida Maria, que o rei de França, Luís XIV, consagrasse a nação ao Sagrado Coração. Este pedido não foi atendido na época. Mais tarde, durante a Revolução Francesa, muitos católicos interpretaram as perseguições como consequência da recusa do rei em obedecer ao pedido divino.
No século XIX, após a guerra franco-prussiana (1870-71), o povo francês ergueu a Basílica do Sagrado Coração em Montmartre, Paris, como voto nacional de reparação.
Primeira celebração
A 20 de Outubro de 1672, o sacerdote francês, João Eudes, celebrou esta festa pela primeira vez. Mas, alguns místicos alemães da Idade Média – Matilde de Magdeburg (1212-1283), Matilde de Hackeborn (1241-1298) e Gertrudes de Helfta (1256-1302) e Beato dominicano Enrico Suso (1295 – 1366), já cultivavam a devoção ao Sagrado Coração de Jesus. No entanto, as revelações que a religiosa da Visitação, Margarida Maria Alacoque (1647-1690), recebeu do Senhor, contribuíram para uma maior difusão do culto.
Reconhecimento oficial pela Igreja
O caminho da devoção culminou no reconhecimento oficial:
- 1765 – o Papa Clemente XIII concede a algumas dioceses francesas a permissão para celebrarem a festa do Sagrado Coração.
- 1856 – o Papa Pio IX estende a festa a toda a Igreja Universal.
- 1899 – o Papa Leão XIII, com a encíclica Annum Sacrum, consagra o mundo inteiro ao Sagrado Coração de Jesus, considerando este ato como “o maior feito do seu pontificado”.
- 1928 – o Papa Pio XI publica a encíclica Miserentissimus Redemptor, sublinhando a importância da reparação ao Sagrado Coração.
- 1956 – o Papa Pio XII, na encíclica Haurietis Aquas, dá um dos mais sólidos fundamentos teológicos à devoção, apresentando o Coração de Jesus como síntese do amor divino e humano de Cristo.
O Sagrado Coração no século XX e XXI
A devoção ao Sagrado Coração continua a ser uma das práticas espirituais mais difundidas no catolicismo:
- É associada à primeira sexta-feira de cada mês, tradição de comunhão reparadora.
- É símbolo de famílias consagradas a Cristo através da entronização da sua imagem.
- Inspirou movimentos e congregações religiosas, como os Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus (Dehonianos).
- Os papas do século XX e XXI têm sublinhado o seu valor como expressão da misericórdia divina, muito em sintonia com a devoção à Divina Misericórdia, promovida por Santa Faustina Kowalska.
Significado teológico e espiritual
O Coração de Jesus representa:
- O amor divino feito humano: o coração humano de Cristo é o sacramento do amor eterno de Deus.
- A entrega redentora: o Coração trespassado recorda o sacrifício da cruz e a doação até ao fim.
- A misericórdia: refúgio para os pecadores e fonte de perdão.
- A reparação: chamado à humanidade a responder com amor ao amor de Cristo.
Conclusão
A história do Sagrado Coração de Jesus é a história do amor divino que se tornou próximo, palpável e humano em Cristo. Das páginas da Bíblia às revelações de Paray-le-Monial, da resistência inicial ao reconhecimento universal, esta devoção tornou-se uma das colunas centrais da espiritualidade católica.
Hoje, o Sagrado Coração continua a ser símbolo da misericórdia e ternura de Deus, chamando todos os fiéis a responder ao amor de Cristo com fé, oração, reparação e entrega generosa da vida.