Poucas relíquias despertam tanta curiosidade, reverência e mistério como a Lança Sagrada, também conhecida como Lança de Longino, Lança do Destino ou Santo Lança. Segundo a tradição cristã, foi com esta arma que um soldado romano perfurou o lado de Jesus Cristo quando Ele estava suspenso na cruz.
Mais do que uma simples arma antiga, a Lança Sagrada tornou-se símbolo do sacrifício redentor de Cristo, da fé que brota do Seu Coração trespassado e do mistério da misericórdia divina que jorra em sangue e água.
Ao longo dos séculos, esta relíquia — ou partes dela — vieram a ser veneradas em diversos locais da Igreja. Em Roma, existe uma das mais antigas tradições de custódia da Lança, surpreendendo-nos pela sua permanência no coração da cristandade.
As origens bíblicas e o significado espiritual
O episódio da lança encontra-se no Evangelho segundo São João (19, 33-35), único entre os Evangelhos a relatar o gesto:
“Mas, vindo a Jesus e vendo que já estava morto, não Lhe quebraram as pernas,
mas um dos soldados Lhe abriu o lado com uma lança,
e logo saiu sangue e água.
Aquele que viu isto deu testemunho, e o seu testemunho é verdadeiro.”
A tradição cristã atribui este ato a um centurião romano chamado Longino, que, segundo relatos apócrifos e patrísticos, teria sido curado da sua cegueira ao ser tocado pelo sangue e água que saíram do lado de Cristo. Convertido, Longino teria abandonado o exército e vivido como cristão, vindo a morrer mártir — razão pela qual a Igreja o venera como São Longino, cuja festa se celebra a 15 de março.
A Lança, portanto, tornou-se símbolo do testemunho da morte real de Jesus, mas também da graça que brota do Seu Coração, origem dos sacramentos e da vida nova dos fiéis.
A relíquia em Roma — história e veneração
Um episódio particularmente significativo ocorreu no século XV, quando o sultão otomano Bajazet II ofereceu ao Papa Inocêncio VIII uma lança venerada como sendo a verdadeira Lança de Cristo.
Segundo as crónicas vaticanas, o presente foi entregue em 1492 por um emissário turco. Bajazet desejava obter a libertação do seu irmão Djem (ou Cem) Sultão, que se encontrava sob a proteção dos Estados Pontifícios, e enviou a lança como presente diplomático e sinal de boa vontade.
O Papa Inocêncio VIII recebeu-a solenemente e mandou colocá-la na Basílica de São Pedro, junto à estátua de Longino, esculpida por Bernini, onde passou a ser venerada pelos fiéis.
Alguns historiadores sugerem que esta seria a mesma lança anteriormente guardada em Constantinopla, mencionada por cronistas bizantinos como estando na basílica de Santa Sofia. Assim, a Lança de Constantinopla teria sido transferida para Roma, tornando-se parte das relíquias da Paixão conservadas no Vaticano.
Exposições públicas
A Lança em São Pedro não está permanentemente exposta, mas é apresentada aos fiéis uma vez por ano, na primeira semana da Quaresma (por tradição, o primeiro sábado da Quaresma) como preparação para a Paixão do Senhor.
Por exemplo, a 24 de fevereiro de 2024, a relíquia foi exposta numa celebração especial na Basílica de São Pedro e em Março de 2025, foi novamente exibida ao público.
Este acto anual de apresentação torna-se ocasião de oração pelos fiéis, momento de contemplação do mistério da Paixão e convite à conversão.
O simbolismo e a atualidade
Na prática espiritual, a Lança assinala-nos várias verdades:
- O lado aberto de Cristo é fonte de vida e unidade — como não se rasgou a túnica, mas permaneceu inteira, assim a Igreja é chamada a permanecer uma.
- A Lança lembra-nos que o mundo não se transforma com poder humano, mas com amor que se entrega — a lância tornou-se instrumento de graça.
- Expor-se publicamente a relíquia ajuda os fiéis a contemplar que Cristo sofreu por amor, deu-se por nós e abre-nos a porta da vida nova.
Na atualidade, a veneração da Lança em Roma continua a atrair peregrinos de todo o mundo, especialmente durante o período quaresmal — é um sinal de que “a fé passa” também pelo corpo da Igreja, pelas suas relíquias e pelo contacto físico com os sinais da misericórdia de Deus.
O significado espiritual da Lança Sagrada
Mais do que uma arma, a Lança Sagrada é um sinal de fé e de revelação divina. O golpe que deveria confirmar a morte de Jesus tornou-se, paradoxalmente, o gesto que revelou a plenitude da vida que Ele nos dá.
Do lado aberto de Cristo nasceu a Igreja, tal como Eva saiu do lado de Adão adormecido — um símbolo profundo do amor criador e redentor de Deus.
Assim, a Lança de Longino continua a lembrar-nos que a misericórdia de Deus fere para curar, e que o Coração de Cristo trespassado permanece aberto para todos os que buscam o perdão e a salvação.
Conclusão
A veneração da Lança Sagrada em Roma, guardada na Basílica de São Pedro, não é mero culto a uma arma antiga — é adoração ao mistério da Paixão, um convite a entrar no Coração trespassado de Cristo e a descobrir a fonte do nosso perdão e da nossa esperança.
Num mundo em que tantas vezes se busca o poder ou a glória, a Lança lembra-nos que a verdadeira vitória é Jesus que se entrega, não o que se impõe. Que, contemplando este sacrifício, sejamos renovados na fé e na caridade, firmes no mistério de Cristo crucificado e ressuscitado.