Entre os muitos símbolos que marcaram a história do papado, poucos são tão emblemáticos quanto a tiara papal, ou triregnum, usada durante séculos nas coroações dos pontífices. No entanto, foi com o Papa São Paulo VI que este antigo símbolo de autoridade espiritual e temporal conheceu uma das viragens mais significativas da história da Igreja. A sua tiara, de desenho singular e de profundo valor simbólico, ficou para sempre associada a um gesto de humildade e renovação no espírito do Concílio Vaticano II.
A Tiara Papal — Breve enquadramento histórico
A tiara papal é uma coroa tripla, usada pelos papas desde pelo menos o século XIV, que simbolizava o triplo poder do pontífice: pai dos reis, governante do mundo e vigário de Cristo na Terra. Cada coroa representava uma dimensão do ministério petrino: o poder espiritual, a autoridade e o serviço universal.
Durante séculos, a cerimónia de coroação papal incluía o momento solene em que o novo Papa recebia a tiara, acompanhada da frase:
“Recebe a tiara adornada com três coroas e sabe que és o pai dos príncipes e dos reis, o governante do mundo e o vigário de nosso Salvador Jesus Cristo na Terra.”
Este gesto tornava-se o ponto alto do início do pontificado e reforçava a dignidade papal perante o mundo católico e as potências da época.
Mas, com a mudança dos tempos, o significado da tiara começou a ser reinterpretado — especialmente à luz do século XX, um período de profundas transformações e de crescente consciência sobre o papel espiritual e pastoral da Igreja.
A Tiara do Papa Paulo VI — Design e simbolismo
A tiara de Paulo VI foi uma das mais simples já confeccionadas. Oferecida pela Arquidiocese de Milão, onde Giovanni Battista Montini servira como arcebispo antes de ser eleito Papa, a peça foi criada com um estilo moderno e sóbrio, afastando-se do luxo das tiaras anteriores.
Em vez das tradicionais pedras preciosas, a tiara era feita em prata polida, com ornamentos dourados discretos e uma forma mais estreita e alongada. Representava, assim, a transição de um símbolo de poder para um sinal de serviço e desprendimento. O seu peso era também significativamente menor, o que refletia o novo espírito de humildade e simplicidade que Paulo VI desejava para o seu pontificado.
A Coroação de 30 de Junho de 1963
A tiara foi utilizada na última coroação papal da história, realizada em 30 de junho de 1963, na Praça de São Pedro, apenas alguns dias após a eleição de Paulo VI.
A cerimónia foi grandiosa e acompanhada por milhares de fiéis, num momento em que a Igreja vivia o entusiasmo e os desafios do Concílio Vaticano II. A coroação de Paulo VI foi transmitida em direto para diversos países — uma novidade na época — e marcou o início do seu pontificado reformador.
Contudo, já durante essa celebração, o novo Papa quis dar um tom de humildade e renovação, lembrando que o poder do sucessor de Pedro não é de domínio, mas de serviço à Igreja e ao mundo.
O Gesto Histórico de Renúncia à Tiara
Pouco tempo depois da sua coroação, em 13 de novembro de 1964, durante uma cerimónia na Basílica de São Pedro, Paulo VI realizou um gesto que surpreendeu o mundo e marcou para sempre a história do papado: renunciou oficialmente ao uso da tiara.
Diante dos fiéis e dos padres conciliares reunidos no Vaticano, o Papa depositou solenemente a sua tiara sobre o altar da Basílica, como sinal de entrega e desapego. O gesto simbolizava a renúncia a qualquer poder temporal e a dedicação plena ao serviço espiritual da Igreja e da humanidade.
O valor da tiara foi destinado a obras de caridade, especialmente em favor dos pobres e das missões. Mais tarde, a peça foi doada à Basílica do Santuário Nacional da Imaculada Conceição, em Washington D.C., nos Estados Unidos, onde permanece exposta até hoje.
A tiara encontra-se numa vitrine no Crypt Church Museum, com uma inscrição que recorda o gesto do Papa e o seu significado como testemunho de humildade e solidariedade universal.
O Fim das Coroações Papais
Após a renúncia de Paulo VI, nenhum Papa voltou a ser coroado. Os seus sucessores — João Paulo I, João Paulo II, Bento XVI e Francisco — optaram por uma cerimónia de início de pontificado mais simples, sem o uso da tiara.
Em vez disso, os novos papas recebem dois símbolos litúrgicos profundamente espirituais:
- O Pálio, sinal do seu serviço pastoral e da comunhão com a Igreja universal;
- O Anel do Pescador, símbolo da missão de Pedro como “pescador de homens”.
Apesar de a tiara ter deixado de ser usada, continua presente no brasão oficial da Santa Sé e, em algumas versões, também no brasão papal, como elemento histórico e teológico que recorda a continuidade do ministério petrino ao longo dos séculos.
O Significado Espiritual do Gesto de Paulo VI
O gesto de Paulo VI foi profundamente profético. Num tempo de mudanças, de tensões políticas e de transformações sociais, o Papa quis mostrar que a Igreja deve ser pobre e servidora, voltando-se para os mais frágeis e para o essencial do Evangelho.
Ao abdicar da tiara, Paulo VI não rejeitou a autoridade do papado, mas purificou-a do poder mundano, reafirmando que o Papa é, antes de tudo, pastor e servo dos servos de Deus. O seu gesto abriu caminho para um novo estilo de liderança pontifícia — mais simples, próxima e humana — que se refletiria nos pontificados posteriores, culminando na espiritualidade de serviço testemunhada pelo Papa Francisco.
Conclusão
A tiara do Papa Paulo VI permanece como um dos objetos mais significativos da história contemporânea da Igreja. Mais do que uma peça de valor artístico, tornou-se um símbolo de conversão e renovação, expressão visível da Igreja que o Concílio Vaticano II procurou inspirar — uma Igreja pobre, humilde e em saída.
O gesto de Paulo VI ecoa até hoje como uma mensagem viva: o verdadeiro poder do Papa, e de todos os cristãos, não está na coroa, mas na cruz e no amor que se faz serviço. A sua tiara, silenciosa nas vitrines do Santuário da Imaculada Conceição, continua a falar ao coração da Igreja com a mesma força de um Evangelho vivido com humildade e verdade.