Neste dia, em 1615, Galileu Galilei era julgado pela primeira vez pela Inquisição

Poucos episódios da história da Igreja Católica foram tão debatidos e mal compreendidos como o processo de Galileu Galilei. Frequentemente apresentado como um conflito entre “fé e ciência”, o caso de Galileu é, na verdade, uma história muito mais complexa, enraizada em questões filosóficas, teológicas e políticas do século XVII.

O que começou como uma discussão científica sobre o movimento dos planetas acabou por transformar-se num símbolo do difícil diálogo entre razão e fé. No entanto, séculos depois, a própria Igreja reconheceu o erro humano cometido no seu julgamento e procurou restaurar a verdade e a justiça, num gesto de humildade e reconciliação.

O contexto histórico

No início do século XVII, a Europa vivia uma profunda transformação cultural e científica. O modelo geocêntrico de Ptolomeu, segundo o qual a Terra estaria imóvel no centro do universo, era a visão dominante, tanto na ciência como na teologia.

A partir do século XVI, o modelo heliocêntrico de Nicolau Copérnico começou a desafiar esta conceção tradicional, propondo que o Sol — e não a Terra — é o centro do sistema planetário.

Foi neste contexto que surgiu Galileu Galilei (1564–1642), matemático, físico e astrónomo italiano, cuja genialidade e ousadia o tornaram um dos pais da ciência moderna.

As descobertas de Galileu

Com o aperfeiçoamento do telescópio, Galileu fez observações revolucionárias:

  • descobriu as luas de Júpiter, provando que nem tudo girava em torno da Terra;
  • observou as fases de Vénus, coerentes apenas com o modelo heliocêntrico;
  • estudou as manchas solares e as montanhas da Lua, mostrando que os corpos celestes não eram perfeitos, como se pensava desde Aristóteles.

A partir destas observações, Galileu passou a defender abertamente o sistema de Copérnico.

No entanto, o problema não era apenas científico. Para muitos teólogos da época, a teoria heliocêntrica contradizia passagens bíblicas que pareciam indicar que a Terra estava imóvel (como Josué 10,13: “o sol parou”).

A controvérsia com a Igreja

Galileu não foi o primeiro a enfrentar resistência da Igreja, mas foi o primeiro a fazê-lo com grande visibilidade pública e num momento de tensão pós-Reforma Protestante.

A Igreja Católica, abalada pelas críticas de Lutero e Calvino, estava especialmente cautelosa com qualquer interpretação das Escrituras que pudesse parecer heterodoxa.

A 19 de fevereiro de 1616, a Congregação do Santo Ofício (Inquisição) declarou o heliocentrismo “falso e contrário às Escrituras”. O livro de Copérnico foi suspenso até ser “corrigido” e Galileu foi advertido para não defender a teoria como verdade, apenas como hipótese matemática.

Galileu aceitou a decisão, mas continuou a pesquisar e escrever.

O “Diálogo” e o julgamento

Em 1632, Galileu publicou a sua obra mais célebre, Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo (“Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo”).

O livro, escrito em forma de debate entre três personagens, comparava o modelo geocêntrico e o heliocêntrico, mas o texto favorecia claramente a posição de Copérnico.

Além disso, a figura que defendia o geocentrismo (chamada Simplício) foi vista como uma caricatura pouco lisonjeira do próprio Papa Urbano VIII, que até então era amigo e protetor de Galileu.

Isto transformou o caso numa questão política e pessoal, e o Santo Ofício convocou novamente Galileu a Roma.

O processo de 1633

O segundo julgamento de Galileu teve lugar em 1633 diante do Tribunal da Inquisição. Durante o processo, Galileu foi interrogado e pressionado a renegar a sua defesa do heliocentrismo. Apesar de nunca ter sido torturado, enfrentou grande pressão moral e psicológica.

Em 22 de junho de 1633, o tribunal declarou-o “veementemente suspeito de heresia”, obrigando-o a abjurar as suas convicções.

Foi condenado à prisão domiciliar perpétua (que depois foi convertida em residência vigiada), e o seu livro foi proibido.

Reza a tradição que, após a abjuração, Galileu teria murmurado a célebre frase “E, no entanto, ela move-se.” (E pur si muove.) Embora essa frase nunca tenha sido documentada, tornou-se símbolo da resistência da verdade científica.

O fim da vida e o legado científico

Galileu passou os seus últimos anos em Archetri, perto de Florença, sob vigilância, mas continuou os seus estudos em mecânica e física.

Em 1638, publicou Discorsi e dimostrazioni matematiche intorno a due nuove scienze (“Discursos e demonstrações matemáticas sobre duas novas ciências”), obra fundamental para a física moderna.

Morreu em 1642, cego e em paz com a Igreja, tendo recebido os sacramentos.

Reabilitação progressiva da sua memória

O processo de Galileu nunca deixou de ser motivo de reflexão dentro da Igreja.

  • Em 1741, o Papa Bento XIV autorizou a publicação das suas obras completas.
  • Em 1822, o Papa Pio VII permitiu oficialmente o ensino do sistema copernicano.
  • Em 1979, o Papa João Paulo II criou uma Comissão Pontifícia para o estudo do caso Galileu, com o objetivo de reavaliar o episódio à luz da fé e da razão.

O pedido de perdão de João Paulo II

Depois de 13 anos de trabalho, a comissão apresentou as suas conclusões. Em 31 de outubro de 1992, durante um discurso na Pontifícia Academia das Ciências, São João Paulo II reconheceu publicamente os erros cometidos pelos representantes da Igreja no julgamento de Galileu.

O Papa afirmou:

Galileu, sinceramente crente, mostrou-se mais perspicaz do que os seus adversários teólogos, que não souberam reconhecer a distinção entre a fé e a ciência.”

E acrescentou:

A este respeito, reconhecemos com arrependimento os erros de alguns homens da Igreja na questão de Galileu.”

Foi um gesto de reconciliação histórica, que procurou reconciliar fé e razão e reafirmar que a verdadeira ciência e a verdadeira fé nunca se contradizem, porque ambas vêm de Deus.

Significado e legado

O “caso Galileu” deixou lições duradouras:

  • mostrou os riscos de confundir interpretação teológica com modelo científico;
  • levou a Igreja a amadurecer na compreensão da relação entre fé e ciência;
  • e serviu de ponto de partida para um diálogo mais fecundo entre teólogos e cientistas.

Hoje, Galileu é lembrado não como inimigo da fé, mas como crente e homem de ciência, cuja curiosidade e confiança na ordem do cosmos refletem o mesmo Criador em que acreditava.

Conclusão

O processo de Galileu Galilei é uma das páginas mais complexas da história da Igreja, marcada por equívocos humanos, mas também por reconciliação e sabedoria posterior.

A reabilitação do seu nome e o pedido de perdão de São João Paulo II recordam-nos que a Igreja é viva e aprende com a história, purificando-se constantemente à luz da verdade.

Como disse o Papa Bento XVI, séculos mais tarde:

A fé e a razão são as duas asas com as quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade.”

E talvez ninguém tenha ilustrado melhor esta união entre fé e razão do que Galileu Galilei, o homem que ousou olhar o céu com olhos de ciência e coração de crente.

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