A história do tempo tal como o conhecemos — os dias, os meses e os anos — está intimamente ligada à Igreja Católica. E uma das suas mais notáveis contribuições para a civilização ocidental foi a reforma do calendário promovida pelo Papa Gregório XIII, através da bula Inter Gravissimas, publicada em 24 de fevereiro de 1582.
Esta decisão papal marcou um dos momentos mais significativos da história da ciência e da liturgia, estabelecendo o calendário gregoriano, que permanece em vigor até hoje na maior parte do mundo.
O problema do antigo calendário juliano
Antes da reforma de Gregório XIII, a Europa utilizava o calendário juliano, instituído por Júlio César em 46 a.C..
Embora notável para a sua época, este calendário apresentava uma pequena imprecisão astronómica: o ano juliano tinha 365 dias e 6 horas (365,25 dias), quando o verdadeiro ano solar, o tempo que a Terra leva a dar uma volta completa em torno do Sol, é de cerca de 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 45 segundos.
Essa diferença de apenas 11 minutos por ano, acumulada ao longo dos séculos, causava um desfasamento progressivo entre o calendário civil e os eventos astronómicos e litúrgicos.
Por volta do século XVI, o equinócio da primavera, que no Concílio de Niceia (325 d.C.) ocorria a 21 de março, já se dava a 11 de março, o que comprometia o cálculo da data da Páscoa, a principal festa do calendário cristão.
A decisão de Gregório XIII
Ciente da importância da correção, Papa Gregório XIII (Ugo Boncompagni) nomeou uma comissão de astrónomos e matemáticos para estudar o problema.
Entre os principais colaboradores encontravam-se:
- Cristóvão Clávio, jesuíta e matemático alemão;
- Luís Lilio (Aloysius Lilius), médico e astrónomo italiano, autor do projeto inicial de reforma.
Após longos anos de estudo, a comissão apresentou uma solução precisa e equilibrada, que conciliava a observação astronómica com as necessidades litúrgicas da Igreja.
Gregório XIII aprovou-a oficialmente com a bula Inter Gravissimas, datada de 24 de fevereiro de 1582.
O conteúdo da bula Inter Gravissimas
O título da bula — Inter Gravissimas Pastoralis Officii Nostri Curas (“Entre as mais graves preocupações do Nosso ofício pastoral”) — já revela o seu propósito: restaurar a correção do tempo em conformidade com o curso do Sol e com as celebrações religiosas.
A bula determinava:
- A supressão de 10 dias do calendário para corrigir o desfasamento acumulado. Assim, após o 4 de outubro de 1582, seguir-se-ia o 15 de outubro de 1582.
- A nova regra para os anos bissextos:
- Seriam bissextos todos os anos divisíveis por 4;
- Mas os anos seculares (terminados em 00) só seriam bissextos se fossem divisíveis por 400.
(Por exemplo, o ano 1600 foi bissexto, mas 1700, 1800 e 1900 não o foram.)
- A restauração do equinócio da primavera para o dia 21 de março, tal como estava na época do Concílio de Niceia.
- A determinação de que a data da Páscoa fosse novamente calculada com base na nova correspondência astronómica.
Esta reforma, cuidadosamente delineada, garantiria que o calendário permanecesse ajustado ao ano solar com um erro mínimo de apenas um dia a cada 3.300 anos — uma precisão extraordinária para a época.
A adoção do novo calendário
A bula entrou em vigor imediatamente nos países católicos:
- Em Itália, Espanha, Portugal e Polónia, a transição ocorreu na noite de 4 para 15 de outubro de 1582.
- Outros países, como França e Luxemburgo, seguiram poucas semanas depois.
Contudo, nos territórios protestantes e ortodoxos, a adoção foi muito mais lenta, pois o novo calendário era visto como uma iniciativa papal e, portanto, suspeita de ter motivações religiosas.
- A Inglaterra e as suas colónias só o adotaram em 1752;
- A Suécia, em 1753;
- E a Rússia ortodoxa, apenas após a Revolução de 1917, passando a usá-lo oficialmente em 1918.
Hoje, o calendário gregoriano é o padrão civil internacional, utilizado pela quase totalidade das nações do mundo, independentemente da religião.
Impacto na liturgia e na vida quotidiana
A reforma gregoriana teve também um profundo impacto litúrgico e pastoral.
Ao restaurar o alinhamento do calendário com os ciclos astronómicos, a Igreja pôde preservar a coerência das celebrações móveis, especialmente da Páscoa, Pentecostes e do Advento.
Além disso, a precisão do novo sistema permitiu que a ciência astronómica e o calendário civil se harmonizassem, servindo tanto a fé como o progresso científico.
O próprio Cristóvão Clávio, ao comentar a bula, afirmou que o novo calendário era “a mais perfeita combinação entre matemática e pastoralidade”.
A herança de Gregório XIII
O nome de Gregório XIII ficou para sempre associado à reforma do tempo.
O Papa, que governou entre 1572 e 1585, era um homem de profunda cultura e grande zelo pastoral.
Além da reforma do calendário, destacou-se pelo fortalecimento da educação católica (criando colégios jesuítas em toda a Europa), pelo apoio às missões e pela promoção da reforma tridentina.
O monumento tumular de Gregório XIII, na Basílica de São Pedro, mostra-o segurando o globo terrestre com o novo calendário gravado — símbolo de uma reforma que uniu fé, ciência e ordem universal.
Um legado que atravessa séculos
A bula Inter Gravissimas foi uma das mais importantes decisões administrativas e científicas da história da Igreja.
Mais do que uma simples correção cronológica, representou um ato de unidade entre fé e razão, num tempo em que ambas eram vistas como complementares.
A Igreja, ao reformar o calendário, reafirmou o seu papel de guardadora da ordem do tempo sagrado, e ao mesmo tempo ofereceu à humanidade uma ferramenta científica e civilizacional que perdura há mais de quatro séculos.
“Entre as mais graves preocupações do nosso ofício pastoral está a de que os tempos santos se celebrem nos dias próprios, e que os fiéis não sejam confundidos pela desordem das festas.”
— Papa Gregório XIII, Bula Inter Gravissimas (1582)
Curiosidades históricas
- O 4 de outubro de 1582 foi seguido diretamente do 15 de outubro de 1582, o que fez com que dez dias “desaparecessem” da história nesses países.
- O Papa Gregório XIII criou também o Observatório Vaticano, um dos primeiros da Europa, para apoiar a reforma astronómica.
- A Páscoa ortodoxa continua a ser calculada com base no calendário juliano, o que explica por que é frequentemente celebrada numa data diferente da católica.
- A introdução do novo calendário gerou resistência popular em alguns países protestantes, onde muitos acreditavam que “a Igreja lhes tinha roubado dez dias de vida”.
O calendário gregoriano permanece, assim, um testemunho duradouro da genialidade e da prudência de um Papa que soube harmonizar o ritmo da criação com o ritmo da liturgia — uma das mais belas expressões da união entre fé e ciência.