A bula Ubi Periculum, promulgada a 7 de julho de 1274 pelo Papa Gregório X durante o II Concílio de Lião, é um dos documentos mais decisivos da história da Igreja Católica. Foi ela que instituiu, pela primeira vez, as regras formais para a eleição do Sumo Pontífice, criando o sistema que hoje conhecemos como Conclave — palavra que vem do latim cum clave, “com chave”, simbolizando o isolamento dos cardeais durante o processo eletivo.
A Ubi Periculum surgiu num contexto de grande crise institucional e espiritual, e marcou uma viragem profunda na forma como a Igreja escolhe o seu líder. A partir dela, as eleições papais deixaram de ser longos e tumultuosos processos políticos e tornaram-se momentos de recolhimento e oração, centrados na ação do Espírito Santo.
Contexto histórico: um papado em crise
O século XIII foi um tempo de grande instabilidade para a Igreja. Após a morte do Papa Clemente IV em 1268, o Colégio dos Cardeais reuniu-se em Viterbo, cidade do Lácio, para eleger o seu sucessor. O que se seguiu tornou-se um dos episódios mais vergonhosos e demorados da história papal:
a eleição durou quase três anos, de 1268 a 1271.
As divisões entre os cardeais — marcadas por influências políticas de potências como França e o Sacro Império Romano-Germânico — impediam qualquer consenso. A população de Viterbo, exasperada, chegou a fechar os cardeais à chave, retirando o teto do edifício onde estavam reunidos e reduzindo-lhes a alimentação, tudo para forçar uma decisão.
Finalmente, a eleição de Tebaldo Visconti, que tomou o nome de Gregório X, pôs fim à crise. O novo Papa, profundamente consciente dos excessos e escândalos do processo, decidiu evitar que algo semelhante se repetisse.
A promulgação da bula Ubi Periculum
A bula Ubi Periculum foi promulgada no dia 7 de julho de 1274, durante a realização do II Concílio de Lião. O título latino significa “Quando o perigo…”, aludindo ao perigo espiritual e institucional que uma longa vacância da Sé Apostólica representava para a Igreja universal.
Gregório X estabeleceu, assim, um conjunto de normas rigorosas destinadas a garantir que a eleição papal fosse rápida, pacífica e inspirada pelo Espírito Santo, afastando pressões externas e políticas.
Conteúdo e principais disposições
A bula Ubi Periculum é um texto de enorme importância jurídica e espiritual. As suas principais determinações foram:
1. Isolamento dos cardeais
Os cardeais deveriam reunir-se num local fechado e isolado, sem contacto com o exterior, até à eleição do novo Papa. Ninguém poderia comunicar com eles, exceto para prover alimento e necessidades básicas.
É daqui que nasce o termo “Conclave”, literalmente “fechado à chave”.
2. Condições de austeridade
Para evitar demoras injustificadas, Gregório X impôs regras severas:
- Após três dias sem eleição, os cardeais passariam a ter apenas uma refeição por dia;
- Após cinco dias, o alimento deveria ser reduzido a pão, vinho e água.
Estas medidas visavam pressionar os cardeais a decidir rapidamente, evitando manobras políticas.
3. Proibição de interferências externas
A bula proibia expressamente a intervenção de reis, príncipes ou autoridades seculares no processo de eleição.
O voto devia ser livre e secreto, guiado pela consciência e pela fé, não por interesses temporais.
4. Local da eleição
Determinava-se que a eleição devia realizar-se no local onde o Papa anterior havia morrido, salvo circunstâncias graves.
5. Obrigação de residência
Os cardeais eleitores não poderiam ausentar-se do conclave, sob pena de excomunhão.
Suspensão e restauração
Apesar da sua importância, Ubi Periculum não foi aplicada imediatamente de forma universal.
Após a morte de Gregório X, alguns papas — como Adriano V e João XXI — suspenderam ou suavizaram as suas disposições, alegando que eram demasiado severas.
No entanto, as dificuldades e escândalos de eleições posteriores mostraram que a bula de Gregório X era necessária.
Assim, em 1294, o Papa Celestino V restaurou plenamente o sistema do conclave, e desde então a essência da Ubi Periculum nunca mais foi abandonada.
Evolução e legado
A Ubi Periculum tornou-se a base jurídica e espiritual de todas as legislações posteriores sobre as eleições papais.
Outros papas, ao longo dos séculos, adaptaram as regras às realidades do seu tempo, mas sempre conservaram o núcleo do que Gregório X estabelecera:
- Paulo VI, com a Constituição Romano Pontifici Eligendo (1975);
- João Paulo II, com Universi Dominici Gregis (1996);
- Bento XVI, com as reformas de 2007 e 2013.
Todas estas normas descendem diretamente do espírito e da estrutura de Ubi Periculum, o documento que deu forma definitiva ao carácter sagrado e reservado do conclave.
Impacto espiritual e simbólico
Para além das regras práticas, Ubi Periculum teve um enorme impacto espiritual.
Ao obrigar os cardeais ao isolamento, a bula quis preservar o discernimento interior e garantir que a escolha do Papa fosse um ato de fé e oração, e não de política ou poder.
O conclave tornou-se, assim, um símbolo da escuta do Espírito Santo.
Desde Gregório X, a Igreja vê o momento da eleição papal não como um processo humano, mas como uma epifania da vontade divina sobre a sucessão de Pedro.
Linha temporal essencial
- 1268–1271 – Eleição mais longa da história, em Viterbo, após a morte de Clemente IV.
- 7 de julho de 1274 – Gregório X promulga a bula Ubi Periculum no II Concílio de Lião.
- 1276 – Morte de Gregório X; os seus sucessores suspendem temporariamente a bula.
- 1294 – Celestino V restaura a aplicação obrigatória do conclave.
- Séculos seguintes – Diversas reformas mantêm o espírito da Ubi Periculum.
Curiosidades históricas
- O conclave de Viterbo foi tão dramático que os habitantes chegaram a lacrar as portas e derrubar o teto da sala onde estavam os cardeais, para forçar uma decisão.
- Gregório X, o Papa que promulgou Ubi Periculum, nunca tinha sido cardeal antes da sua eleição — era um arcediago e teólogo de prestígio, escolhido precisamente pela sua neutralidade.
- Desde a Ubi Periculum, o conclave tornou-se um dos ritos mais antigos e ininterruptos da Igreja, preservado até aos dias de hoje.
Conclusão: o nascimento do conclave, sinal de unidade
A bula Ubi Periculum permanece como um dos marcos fundadores da história eclesiástica.
Gregório X, iluminado pela experiência amarga das divisões e demoras, instituiu um modelo que uniu a Igreja em torno do essencial: a oração, o recolhimento e a obediência à vontade de Deus.
Graças a este documento, o conclave tornou-se um símbolo visível da unidade da Igreja e da confiança no Espírito Santo, que continua, século após século, a guiar os cardeais na eleição do sucessor de Pedro.
